Para Abrão, Ana Lúcia e Edmauro
Na abertura deste mês estranho, tempo indeciso entre um inverno que não veio e um verão ameaçador – como se não houvesse lugar para a primavera prometida – alguém de minha intimidade olhou fundo nos meus olhos e deferiu uma flechada fatal: que espera deste mês? Pois é, essa seria mais uma daquelas perguntas que, buscando saídas, se bifurcam entre um escorregadio “sei lá, não pensei no caso”, ou, outro caminho mais introspectivo, “é um momento de recolha e avaliação”. Sem ser metade, a localização setembrina no calendário sugere um respiro: oito meses passados e que fizemos dos planos de ano novo? No mesmo impulso caberia um alento: ainda dá tempo para salvar os propósitos não satisfeitos. E não foi por acaso que depois, sozinho, eu comigo mesmo, me vi recolhido em busca de respostas mais profundas. O que esperar deste setembro?
Como sempre acontece, sondei respostas consoladoras. E logo busquei alguma trilha sonora para me acompanhar e assim foi fácil chegar a um site sugestivo “setembro amarelo: 50 músicas para aquecer a alma; ouça playlist”. Devo dizer que acessei com certa cerimônia, como quem pede licença e se despe para uma purificação necessária. E então teclei https://www2.ufjf.br/noticias/2018/09/25/setembro-amarelo-50-musicas-para-aquecer-a-alma-ouca-playlist/. De repente, perdido entre melodias e letras, se anunciava uma resposta, ou melhor, algumas, afinal concluía que não era só para mim que setembro se expressava problemático e carente de sentido. A menção a “setembro amarelo” dizia muito, “mês de prevenção ao suicídio”. Três amigos sensíveis já haviam postado algo referente a isso em uma rede social e a combinação de “alerta” com “melancolia” me induzia a nova investida: por que setembro fora escolhido como mês dedicado a esse tema? E a tal playlist fazia sentido. Doloroso sentido, diga-se. Setembro amarelo…
Manuscrito de Virginia Woolf em que anuncia seu suicídio
Inquieto, despertei meu lado indagador e joguei sonda no passado. Devo dizer que, para tanto, na liturgia daquele exato instante, dispensei lembranças de tantos livros importantes, estudos sérios resultantes de pesquisas. O enredo que buscava era mais simples, sentimental, algo mais afeito à memória do que propriamente à ciência ou literatura. E foi assim que três suicídios famosos me vieram à lembrança: o de Sócrates convidado a tomar cicuta por suas ideias, o de Catão que para defender suas ideias de república, depois de se ferir sem chegar a morte, com as mãos, arrancou as próprias entranhas e de Virginia Woolf que colocou pedras no casaco e atirou-se na correnteza de um rio. Mas essas mortes espetaculosas mais me pareceram alegorias trágicas que se esgotam em fins romantizados ou heroicos. Num repente inesperado, voltou-me condenação feita por Santo Agostinho, no século V, atribuindo pecado às mortes autoprovocadas. E como sempre me entristeço com as condenações que segregam quem assume tais opções como se fossem banais, covardes, fora de lógicas. E é preciso estarrecer continuadamente quando contamos cerca de 700 mil dessas mortes no mundo e mais ainda quando constatamos que no Brasil, em média, 13 mil pessoas correm da vida.
Cartas e diários da escritora inspiram estudos
E quantos setembros correram calendário afora até que chegasse 1994, ano em que a história de um jovem norte-americano de 17 anos, Michael Emme, rapaz cordato, benquisto e sem problemas aparentes, depois de reconstruir um carro velho e abandonado, dando acabamento amarelo ao veículo restaurado, sentou-se à direção e tirou a vida com um tiro definitivo. A surpresa dessa trama aturdiu familiares, vizinhos, colegas que se viram incapazes de perceber a dor incontida. No Brasil, em 2015, um grupo de voluntários do Centro de Valorização da Vida (CVV), juntamente com outras instituições, deu forma a uma proposta que atende 24 horas por dia pelo telefone 188 – e também por chat de domlngo das 17h à 01h, de Segunda a Quinta das 09h à 01h, Sexta das 15h às 23h, Sábado das 16h à 01h. É só ligar, anonimato garantido e grátis.
Mas a pergunta que não pode descansar silente recomenda que nos questionemos: e nós? Que relação temos com o suicídio? E com quem já tentou contra a própria vida, que fazemos? E mais, em relação aos familiares de auto imolados, como agimos? Será que basta delegar ao estado, às religiões, ou aos mecanismos de apoio, a responsabilidade da prevenção? Conversamos com filhos, pais, amigos, vizinhos sobre esse assunto? Ou é melhor continuar calado, no máximo nos compadecendo ou sendo passivamente solidários? Será que precisaremos de novo setembro para voltar ao assunto? Será?