Enquanto os sábios analisam alternativas, a sociedade despenca num buraco sem fundo
‘Nada de puxadinhos’, zangou-se o ministro, o mesmo que leu oito livros — no original — sobre os processos de reorganização da economia mundial. “Precisamos de um programa social robusto, consistente e financiado.” Foi fácil encontrar acordo quanto aos dois primeiros adjetivos, mesmo porque, no governo, é unânime a opinião de que o país precisa de programas sociais “robustos e consistentes”. Nem tanto para aliviar a miséria dos que têm fome ou para mitigar o desespero dos desempregados. Nem tanto para estimular o consumo da sociedade ou o dinamismo da economia, mas porque um programa “robusto e consistente” é essencial para a reeleição do salvador da pátria, que precisa salvar-se a si mesmo para continuar posando como salvador de todos. Calou-se o coro dos que denunciavam o Bolsa Família como um programa demagógico e populista, feito sob medida para preguiçosos e para dar votos a seu criador. Entretanto o bicho está pegando quanto à terceira palavra do enunciado do douto ministro: como financiá-lo?
Há meses políticos e especialistas quebram a cabeça. O famoso teto de gastos do Estado tornou-se um mantra, é intocável. Aventou-se o recurso óbvio, por tradicional, de avançar sobre os salários dos funcionários públicos, que viria embalado numa pomposa reforma administrativa. Não colou. Por prudência, foi recusado. Propuseram-se então outras fórmulas de transferir recursos dos menos pobres para os mais pobres: que tal congelar o aumento do salário mínimo por alguns anos? Ou subtrair algum do seguro-desemprego? Ou sacar de outros programas sociais? Rejeitadas, por indignas. Por que não sugar fundos destinados à pesquisa científica, onde sobram as verbas, embora estejam sempre reclamando? A ideia sequer foi considerada.
Um verdadeiro impasse.
Surgiu agora uma nova opção, já abandonada: não pagar dívidas validadas pela Justiça, os precatórios, e dar uma boa garfada na educação básica, a velha história do mau-caráter que tira o doce da boca das crianças. Estas não chegaram a reclamar, por desorganizadas. O mercado, porém, este espectro que ronda a sociedade, que ninguém vê, mas está em toda parte, e se faz ouvir, protestou. Autorizar o governo a praticar um calote, seja ele qual for, seria um mau precedente, capaz de induzi-lo a outros, perigosos, como não pagar os juros da dívida pública, este abundoso úbere, de gordos mamilos, em que mamam estas gentes operosas e austeras que emprestam dinheiro ao Estado.
Enquanto os sábios analisam alternativas, a sociedade despenca num buraco sem fundo.
A PNAD contínua flagrou 13,1 milhões de desempregados, equivalentes a 13,8% da população (serão 15% até o fim do ano, segundo estimativas). Somadas aos 5,7 milhões de subocupados, os que trabalham menos do que desejariam, e aos 13,9 milhões de desalentados, que desistiram, embora disponíveis, temos um total de 32,9 milhões de brasileiros penando na angústia e no desespero, incluídos na sociedade, contudo excluídos de suas atividades produtivas, da possibilidade de um trabalho digno e de gozar os prazeres só permitidos aos que podem pagar.
Nem tudo, porém, são espinhos nesta terra alcatifada de flores. A revista “Forbes” anuncia que, neste ano de trevas para as grandes maiorias, os bilionários brasileiros cresceram a uma taxa de 16%. Temos agora 238 bilionários, acumulando uma fortuna de 1,6 trilhão de reais. No campeonato da desigualdade de renda, figuramos no pelotão de frente, acompanhados por algumas outras potências, como Guatemala, República Centro-Africana e Botsuana. O 1% mais rico concentra uma riqueza equivalente aos trocados de metade da população. Como diz um ditado libanês, é gente que tem dinheiro para tomar sorvete no inferno.
Não estaria aí uma solução para sair deste beco? Fazer os muito ricos financiarem os programas sociais com os seus patacos? Eles não gostariam, é claro, mas poderiam ser consolados com uma frase de Sêneca: magna servitus est magna fortuna, uma grande fortuna é uma grande servidão.