O mundo é polissêmico. Tudo depende do jeito de falar, do tom de voz, maneira de escrever ou se expressar. Na mesma toada de “o que dá pra rir dá pra chorar”, do batido “copo meio cheio, meio vazio”, ou mesmo da “rosa entreaberta, entrefechada”, a referência ao caipira e ao negro pode se ajeitar tanto no preconceito pejorativo como no elogio ufanista. O enfoque fica mais complicado quando luzes são acesas sobre o brio nacional e a participação na cena política recente. É aí que a memória ganha nuanças consequentes e coloca em questão a civilização de feições europeias como avesso do nacionalismo de matiz acaboclada. Mas… mas tem hora em que o orgulho nativista reponta desafiando a redefinição do ethos da brasilidade. O uso político dos julgamentos é termômetro propício para medir a absorção de questões como “caipirismo” e “mestiçagem”. Na mesma medida, o contraste emerge quase sempre em nome da dicotomia progresso x atraso.
Com certeza, em termos amplíssimo, este debate como nó teórico foi amarrado nos anos de 1920 – mais precisamente em 22 – quando então o Movimento Modernista deu argumentos formais para a aparente refutação do método colonizador europeu. Frases fáceis e de efeitos estéticos ecoaram em brados picantes como “tupi or not tupi” (Oswald de Andrade) ou “sou um tupi tangendo um alaúde” (Mario de Andrade). Com a passagem pronunciada em 1928, no livro “Macunaíma”, de Mario de Andrade, estava decretado o dilema “Oropa, França e Bahia”, e assim, abria-se a temporada para a qualificação moderna de quem somos.
Mário e Oswald de Andrade: “tupi or not tupi” ou “sou um tupi tangendo um alaúde”
Na fresta irrompida na década de 1930, os três grandes ensaios fundadores da produção intelectual brasileira se abraçaram para nos explicar na chave da “Raízes do Brasil” (Sergio Buarque de Holanda), “Casa grande e senzala” (Gilberto Freyre) e “História econômica do Brasil” (Caio Prado Júnior). De certa forma, ainda que com críticas, a cultura em todos níveis expressivos carreou o pressuposto da gentileza mestiça e das delícias tropicais. Como estereótipo de conveniência, nos deixamos transparecer como país harmonioso, de relações incruentas, enfim um povo acolhedor, simpático, brincalhão. E nossas marcas eram o samba, a feijoada, o carnaval junto com o futebol, e mais recentemente a caipirinha e a capoeira. Tudo bem arrumadinho no melhor feitio esticado popularmente na base do “patropi”.
Diria que nos anos de 1980, na apelidada “década perdida”, publicamente os desconfortos latentes começaram manchar essas lógicas simplistas que não se continham mais nas abstrações genéricas e teóricas. Era chegado o tempo da provação prática que punha em dúvidas as referências filtradas pela representatividade abstrata. E não foi sem motivos que as campanhas eleitorais deixaram transparecer tais dilemas, até porque os votantes teriam que caber nos perfis dados pela “imagem e semelhança” dos candidatos. Convém lembrar que a essa altura já havia concorrentes com perfis populares, comprometendo a generalidade estereotipada. Tudo ficou mais explícito na campanha presidencial que culminou com a vitória de Collor de Melo em 1989 quando um nordestino, migrante, perdeu para um legítimo filho da elite. Seu substituto, Itamar Franco, passou a ser taxado de “caipira”, e por isto incapaz.
O então presidente Itamar Franco
Na eleição de 1994, o tema sobre a representatividade étnica ganhou notável visibilidade. Sobremaneira, o candidato Fernando Henrique Cardoso, intelectual respeitado por produção acadêmica fundamental, projetou o problema tanto em esfera nacional como internacional. Dono da sofisticada “teoria da dependência”, onde demonstrava a fatalidade do vínculo entre “centro e periferia”, em sua campanha presidencial, tendo novamente como opositor o mesmo tipo “do povo”, atraiu o debate para o eleitorado. Valendo-se de estratégia populista, a fim de garantir que não exclusivamente da elite, insistia em dizer-se “mulatinho”, “com pé na cozinha” e até “africaninho”.
As escolhas de FHC objetivaram primeiro o eleitorado negro, mas manteve o tom negativo do caipira. Em 1996, por exemplo, disse em Lisboa “como vivi fora do Brasil, na Europa, no Chile, na Argentina, me dei conta disso: os brasileiros são caipiras. Desconhecem o outro lado e, quando conhecem, se encantam”. No ano 2000, novamente em campanha, não poupou os caipiras e naquele junho, disse textualmente: “Foi a mentalidade realmente colonial que, infelizmente, pegou parte da nossa elite, até parte da elite universitária, da elite da imprensa, que tem cabeça colonial, que imagina que o Brasil é um país que tem de andar de cabeça curvada a toda hora”.
Sobre o caipira, a percepção negativa de FHC atravessou os tempos, não mudou, e fez-se particularmente notável quando em 2012, falando sobre moderna política expressou-se contra seu ex-ministros (duas vezes) Serra dizendo que ele era “provinciano”, mas muito pior foi referir-se a Alckmin, reconhecendo que “ele não saiu de Pindamonhangaba ainda. Quando foi deputado federal, parecia um vereador”, aludindo a prática de trocar telefonemas com prefeitos para discutir convênios firmados pelo governo estadual.
Fernando Henrique Cardoso e Itamar Franco
O olhar crítico negativo de FHC sobre os caipiras sugere outra leitura de sua teoria da dependência: tudo fica submetido a uma mentalidade central, urbana, industrial, que, por sua vez, projeta o caipira na margem oposta. E então a culpa de tudo passa a ser do pobre caipira que, afinal, seria o produto acabado da tal mentalidade colonial. Estranho mesmo é o processo de escolha de contingentes de eleitores. Os caipiras ficaram de fora, pois, grosso modo, não participam maciçamente do bloco votante engrossado pelos negros nas cidades. A boa notícia é que aos poucos vamos aprendendo a ver quem é quem, além dos preconceitos e, assim, entendemos melhor quem é quem…