Fiquei intrigado com uma frase lida no para-choque de velho caminhão que trafegava sei lá para onde “Pai a gente pode duvidar, mãe a gente tem certeza”. Retive o dizer e no retraço da estrada dei eco àquelas palavras. Resolvi fermentar a inquietação e até criei uma estratégia analítica: dividi em duas partes, a começar pela hesitação “pai a gente pode duvidar”. Logo me autorizei supor que se tratava da vagância de homens, caminhoneiros, Ulisses do asfalto que, certamente tinham aventuras para contar e, quiçá, filhos não sabidos. Avesso da oscilação sobre o masculino, à mãe caberia fiança plena, pois pela gestação e parto, pela guarda, garantiriam lastro indubitável entre a criatura e a cria. Mães, Penélopes bordadeiras de cotidianos ininterruptos…
Foi fácil derivar para outros para-choques errantes, muitos afeitos à mesma devoção: “amor só de mãe”, “amor de mãe não tem igual”, “no coração de mãe sempre cabe mais um”, “mãe, meu único porto seguro”. Desse rosário de frases feitas ocorreu até uma trilha sonora, aliás, muito apropriada considerando o recente afastamento de Agnaldo Timóteo. E então, como cheiro de mãe onipresente rezingava algumas das doze canções contidas em LP de 1995, sob o título “obrigado mãe”. É claro que dentre as pérolas, uma se distinguia, o dueto com Ângela Maria: “mamãe, mamãe, mamãe/ eu te lembro chinelo na mão/ o avental todo sujo de ovo”. E de maneira quase pueril desdenhava o juízo brega insistindo “se eu pudesse/ eu queria outra vez, mamãe/ começar tudo, tudo outra vez”…
E em meu livre pensar a estrada se fazia viagem… Pela saudade que me tomou, foi mecânica a exaltação do amor materno que me incluiu crente de um dos mitos mais benditamente aceitos. Por lógico, o enquadramento da condição feminina hoje se presentifica em confrontos, e neles o diabinho que me habita cutucava meditações sobre novos papeis sociais da mulher / mãe (e do homem / pai). E foram tantos os prismas que até elenquei alguns relativos às novas configurações familiares: unidades parentais menores, maternidade tardia e concorrida com a realização feminina pessoal, novas parcerias familiares, pais separados… Nossa, de repente eram tantos os diferenciais que fiquei tonto. Foi assim que busquei amparo em minha história familiar, e nela perfilei minha mãe…
Por certo, minha experiência filial faz coro com tantos que se enquadram na primeira geração de filhos de emigrantes árabes. A muitos, como eu, restava seguir o rastro dos pais e se dedicar ao comércio. Meu caso, porém, foi bem outro, pois desde menino me determinei professor. Ponto fora da curva, o enfrentamento estava exposto. Foi minha mãe quem primeiro reconheceu que, acima de tudo, eu só seria realizado fazendo o que queria. Não que ela endossasse minha incômoda escolha, não; mas sua sensibilidade latente fez com que admitisse minha alternativa repartida entre possibilidades práticas e o caminho do meu coração. Nada faltou no conjunto parental para me desestimular, nada. Minha teimosia teve que ser testada no limite e só garanti firmeza pelo surdo paradoxo dada por ela, expresso no olhar ambíguo de alguém que compreendia meu desejo fora dos trilhos dados. E seus olhos não mentiam no castanho profundo que me fazia crer no interdito “vá em frente meu filho”. Como essa ambiguidade me ajudou! Vendo agora, depois que a carreira se fez, reconheço a sagacidade daquele olhar e adivinho sua dificuldade mediadora. Na quietude de nossos verbos, sobretudo, presidia um pacto amoroso que a permitia uma dissimulada do bem, do meu bem. Ah, os olhos castanhos de minha mãe!…
Saboreio as lembranças mais ternas de minha mãe e nessa saudade sinto agora seus olhos castanhos, fiéis, profundos demais, e legitimo assim alguns dos dizeres desses caminhões “amor só de mãe”, “amor de mãe não tem igual”, “no coração de mãe sempre cabe mais um”, “mãe, meu único porto seguro”. Ah que saudade dos olhos castanhos de mamãe.