Há 50 anos, mataram quatro soldados no quartel (foto galpão do antigo BIB)
A pesquisadora Glenda Mezarobba localizou no arquivo do Superior Tribunal Militar os cinco volumes do processo que tratou da morte de quatro soldados do 1º Batalhão de Infantaria Blindada (BIB) de Barra Mansa (RJ) em janeiro de 1972. Essa documentação ficou inacessível por meio século, e Mezarobba trouxe-a à luz no último número da revista piauí.
Se a morte de Vladimir Herzog em 1975 abriu uma clivagem na sociedade civil, o caso dos quatro soldados de Barra Mansa abriu uma fenda no meio militar. Fenda pequena e silenciosa.
O crime: no final de 1971, o capitão Dálgio Miranda Niebus foi encarregado pelo comandante do batalhão de investigar o tráfico de maconha no quartel. Foram presos e torturados mais de dez soldados. No dia 12 de janeiro, dois estavam mortos. Os cadáveres foram dispersos. Um corpo foi decapitado. Nos dias seguintes morreram mais dois. Um corpo foi parcialmente carbonizado.
O ocultamento: no dia 17 de janeiro, o comandante interino do 1º BIB, tenente-coronel Gladstone Pernasetti, comunicou a “deserção” de quatro soldados.
A denúncia: familiares de um soldado queixaram-se a um padre, e ele contou o caso ao bispo de Volta Redonda, dom Waldyr Calheiros. Ele celebrou a missa de sétimo dia do jovem e denunciou o que sabia.
Nessa altura, numa rápida sucessão, aconteceram coisas que não constam do processo. Em sigilo, parte da hierarquia católica tratava de denúncias de crimes com representantes do governo, e dom Waldyr mencionou o caso ao general Antônio Carlos Muricy, um oficial católico e valente, que se atracara com um assaltante, tomando um tiro no coração. (A bala alojou-se na parte necrosada por um infarto e lá ficou, por anos.)
— Duvido que o Exército faça uma coisa dessas — respondeu Muricy ao bispo.
Muricy contaria mais tarde que foi procurado pelo general Walter Pires, comandante da Brigada de Infantaria Blindada:
— Estou tomando conhecimento de um caso bárbaro. Quero agir para punir os culpados.
Muricy estimulou-o.
(Aqui fica um mistério: foi Pires quem procurou Muricy, ou Muricy quem procurou Pires e deixou o mérito para o amigo?)
Dom Waldyr veio a saber que, dias depois, Muricy teria dito:
— Infelizmente, temos de dar a mão à palmatória, o bispo tem razão.
No dia 27 de janeiro, o coronel Mário Orlando Ribeiro Sampaio, encarregado por Pires de apurar o caso, prendeu os envolvidos, começando pelo capitão Niebus. Sucederam-se confissões guardadas na documentação do processo. No dia 1º de fevereiro, o capitão revelou que o comandante interino do Batalhão sabia de tudo.
Uma semana depois o Ministério do Exército reconheceu que os encarregados de investigar o caso da maconha “agiram de maneira condenável e deformada, provocando a morte dos soldados”. Àquela altura, apesar da censura que proibia referências a torturas, o general Gustavo de Moraes Rego comentava a investigação no gabinete do presidente eleito Ernesto Geisel, usando a palavra proibida.
O caso de Barra Mansa tramitou em segredo na Justiça Militar. Ficou conhecida a sentença de nove réus. O capitão foi condenado a 84 anos de prisão, e o tenente-coronel a sete anos. Todas as penas totalizaram 470 anos, mas, ao fim das contas, elas foram fortemente reduzidas.
O repórter Marcelo Auler reconstitui há alguns anos parte do quebra-cabeça, Mezarobba documentou o quadro policial e jurídico do tabuleiro.