Há guerras mais divulgadas e outras ocultas por elipses não justificadas moralmente e que são silenciadas e assim deixam de machucar nossos olhares estetizados
Crônica é um gênero distinguido pela leveza, bom humor, picardia. Cantadora do cotidiano, produzir crônica equivale celebrar as coisas comuns como se fossem peças sagradas. Afora ramos específicos que se deleitam em comentários esportivos, históricos, políticos, nossa crônica se abrasileirou como prática popular a partir de floreios plantados por Machado de Assis, João do Rio, Rachel de Queiroz, Cecília Meireles. Gerações seguintes projetaram Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Millôr Fernandes, e mais recentemente Fernando Verissimo, Mario Prata, Martha Medeiros, entre muitos outros. Tendo principalmente os jornais e revistas como suportes, a crônica se impôs no Brasil anulando inclusive a pecha de “gênero menor”.
Um olhar analítico sobre o vasto bosque de assuntos lançados com frequência, porém, sugere um problema que se levanta maior: são apenas planuras as zonas temáticas mapeadas por tanta gente? Nossa crônica se explica apenas pela valorização de capturas do dia a dia, textos pândegas ou brincalhões? O exame é sutil, pois qualquer viagem pela produção desses nossos gigantes mostra que cá e lá escritos graves comprometem a hipotética lisura temática e, então, a topografia se altera vertiginosa, exibindo brados indignados. Ardilosos, nossos cronistas mostram que a estratégia dessas parcas rupturas está exatamente na pontuação rara, precisa, cirúrgica. E foi assim com Rubem Braga, Antônio Callado, Joel Silveira e Carlos Heitor Cony.
Rubem Braga ajudou a abrasileirar nossa crônica popular
Devoto que sou do gênero, me pergunto sobre a oportunidade de falar de guerras e massacres, de dramas e tragédias que sangram a recepção de leitores que se acostumaram com mensagens encantadoras. E assim, de vez em quando, segundo lições de mestres, eu que julgo ter vocação, me vejo autorizado a trocar o passeio voyeur, por uma prosa menos coloquial, pela agudeza da crítica. Aprendiz de cronista, precisei deste introito para chorar um pouco sobre as desgraçadas guerras de nosso tempo. Sobre elas e sobre como nos comportamos no tropical berço esplêndido.
Em que mundo vivemos?! Supúnhamos que finda a Guerra Fria teríamos um tempo de paz e construção social. Nada. Qualquer olhar pouco mais atento mostra que convivemos com conflitos graves – uns mais notados que outros, ainda que todos igualmente catastróficos. Há guerras mais divulgadas, ou “fotogênicas”, e outras ocultas por elipses não justificadas moralmente e que são silenciadas e assim deixam de machucar nossos olhares estetizados. Refiro-me, por exemplo, ao conflito Azerbaijão com Armênia em Nagomo-Karabakh; à guerra civil do Iêmen; da Etiópia contra TPLF; de Burkina Faso (que envolve 10 países); da Somália; do Sudão; de Mianmar. E as que se alongam em desgraças herdadas como a infindável guerra da Síria. Isso sem falar, é claro, dos recentes enfrentamentos, escandalosos, entre a Rússia com Ucrânia e principalmente de Israel e o Hamas.
Mario Prata começou com livros antes de abraçar a rapidez e criatividade dos diários
Mas o que pode fazer um modesto cronista frente a tanta lazeira? Lembro-me de um verso de Drummond que ajuda pensar na nulidade pessoal frente a formidável indústria de guerras – sim, porque há quem lucre muito com tais desordens – e então retomo a pequenez que se abateu sobre alguns intelectuais brasileiros frente a guerra civil espanhola (1936 – 39) e, então, para mim mesmo declamo como prescreveu o poeta “Ah, se eu tivesse navio! Ah, se eu soubesse voar! Mas tenho apenas meu canto, e que vale um canto? O poeta imóvel dentro do verso, cansado de vã pergunta farto de contemplação, quisera fazer do poema não uma flor: uma bomba e com esta bomba romper o muro que envolve Espanha”.
Pois é, esta crônica é atestado de minha impotência, prova viva da nulidade que represento no complexo jogo de poder exercitado por grupos poderosíssimos em disputas por competência fundamentadas em razões espúrias. Mas, mesmo assim alento meu esforço e o junto à indignação de jovens estudantes universitários que se mostram valentes para pressionar instituições idealmente feitas para o zelo da concórdia, mas que não conseguem se impor. E então penso que a crônica vale como uma vírgula ou breve parada, pausa fluida sim, mas capaz de evocar os deuses das guerras pedindo que leitores rezem junto comigo. É frustrante admitir que tão pouco podemos fazer. No mais, cabe apelar pela paciência de eventuais leitores que hão de me desculpar pela troca do riso ou do entretenimento. Cumpro a lição dos cronistas mestres e pontuo minhas falas rotineiras com uma lágrima. Afinal, que mais posso fazer senão chorar com palavras crônicas?