“Estamos rejulgando esse caso quando a ministra Maria Thereza [que participou do julgamento] não está mais presente”, disse o ministro do TSE Herman Benjamin, relator desse processo, para seus pares na sessão plenária do TSE de terça

Plenario TSE

Sessão plenária do TSE na noite de terça, 25

            Foi reveladora a sessão plenária transmitida ao vivo na noite de terça-feira, 25, sobre o julgamento dos embargos de declaração impetrados pela defesa de Ortiz Júnior (PSDB). O TSE simplesmente anulou o julgamento realizado no dia 1º de agosto quando por 4 votos a 3 cassou e manteve inelegível o prefeito que se mantinha no cargo graças a uma liminar concedida pelo ministro João Otávio de Noronha, então presidente em exercício do TSE, em 12 de janeiro de 2015.

Na sessão de terça, chamou a atenção o comportamento do ministro Gilmar Mendes, presidente da suprema corte eleitoral. Superou todas as expectativas quando deixou de lado seu voto de qualidade (voto de minerva quando há empate) e desfraldou a bandeira em defesa do prefeito cassado e tornado inelegível pelo próprio TSE, no dia 1º de agosto. Mendes atropelou seus pares, o Regimento Interno do próprio TSE e até mesmo o ritual consagrado do voto de qualidade caso a votação terminasse empatada.

Pode parecer exagero de minha parte, mas tive o cuidado de rever as respectivas sessões: a que condenou Ortiz Jr no dia 1º de agosto e a que deu provimento aos embargos de declaração à sua defesa na noite de 25 de outubro, que pode ser vista no link https://www.youtube.com/watch?v=GZMzILEuTz8

.           Meu estômago ficou embrulhado. Juro! O mal-estar foi provocado pelo comportamento ostensivo – irônico e desrespeitoso – do ministro Gilmar Mendes ao atropelar a tudo e a todos logo após a leitura do voto do ministro relator Herman Benjamin, para defender Ortiz Júnior e concluir seu voto pedindo o provimento (aceite) dos embargos.

Antes, porém, vou explicar a origem do meu incômodo.

Gilmar Mendes

Ministro Gilmar Mendes, presidente do TSE

Retrospecto: um roteiro

Há mais de 13 anos acompanho pari passu a vida política na terra de Lobato. Em 2003, por exemplo, entrevistei todos os candidatos a prefeito, inclusive Bernardo Ortiz, o pai, que dirigia a cidade e o seu partido, o PSDB. Ortiz Júnior era um jovem com menos de 30 anos que acompanhava de perto a vida política de seu genitor.

Um pequeno enorme detalhe: Roberto Peixoto (PMDB), o prefeito eleito, foi apoiado pela família Ortiz. Repetia-se a saga do coronel que elegera seus três sucessores, antes de nomeá-los iscariotes e romper com aqueles que o “traíram”. Ortiz pai se considera uma entidade apadrinhada pelos deuses que o elegeram um “guia genial”.

Peixoto foi um desastre. Poderá ser preso a qualquer momento condenado por improbidade administrativa e desvio de recursos públicos. E de quebra arrastou consigo a mulher, a filha e o genro. Bernardo Ortiz, seu criador, nunca fez qualquer autocrítica a respeito do comportamento da criatura que ele impôs ao seu partido, o PSDB, que o elegeu em 2004.

Bernardo

Ex-prefeito Bernardo Ortiz, criador de Roberto Peixoto e pai do prefeito Ortiz Jr

            Em 2008, tem início a saga do príncipe herdeiro. Preparado e treinado para assumir o patrimônio político paterno, Ortiz Júnior entrou na disputa pela prefeitura de Taubaté com Roberto Peixoto (PMDB), Padre Afonso (PV) e Fernando Borges (PSOL).

Peixoto foi reeleito com 50.710 votos (33,51 %), apenas 1,4 % a mais que o segundo colocado, Padre Afonso, que obteve 48.601 votos (32,11%), e Ortiz Júnior que amargou um 3º lugar com 46.890 votos (30,98 %). Revelou-se um bom aluno do mestre e guia Bernardo com quem havia rompido no primeiro ano de seu mandato. CONTATO denunciou e mostrou imagens de material de construção entregue pela prefeitura na periferia da cidade.

No dia 16 de outubro de 2008, o Procurador da República, João Gilberto Gonçalves Filho, entrou com representação pedindo a cassação de Peixoto com base em três denúncias que “repercutiram diretamente em sua apertada vitória”.

Essa e outras histórias serão contadas no caderno especial do CONTATO que sairá por ocasião do aniversário da cidade.

Trauma familiar

Em 2008, Ortiz Júnior e Padre Afonso dividiram a liderança das pesquisas até as vésperas do pleito. O 3º lugar, portanto, significou uma derrota inaceitável para o clã Ortiz, que domina a política local desde o começo dos anos 80 do século passado. A situação precisava ser revertida a qualquer custo.

A primeira tentativa foi tentar uma cadeira na Assembleia Legislativa em 2010. Ortiz Jr obteve apenas 52.332 votos, pouco a mais do que obteve para prefeito dois anos antes.

Crédito: Marcelo Camargo/ Ag Brasil

Governador Geraldo Alckmin nomeou Bernardo pai presidente da FDE (crédito: Marcelo Camargo/ Ag Brasil)

Bernardo pai, muito próximo do governador Geraldo Alckmin, fora nomeado presidente da Companhia de Desenvolvimento da Agricultura de São Paulo em fevereiro de 2005. A reportagem do CONTATO registrou: “Foi muito simples, porém, muito emblemática a cerimônia de posse de Bernardo Ortiz, na Codasp, na sexta-feira, 25. Os visitantes que foram prestigiar a posse do ex-prefeito na empresa estatal, subordinada à Secretaria da Agricultura do Estado, tiveram de aguardar de pé, com água e cafezinho de bule num canto do corredor, sem garçon e sem nada. Autoridades? Pouquíssimas. E assim mesmo só aquelas afeitas ao trabalho como Ricardo Borsari, diretor Superintendente do DAEE; representantes de prefeituras do Vale do Paraíba e técnicos”. Em janeiro de 2007, o novo governador José Serra exonerou Bernardo.

Alckmin foi eleito novamente governador em 2010 e reeleito em 2014. Assim que tomou posse em 2011, nomeou o amigo Bernardo Ortiz para comandar a poderosa Fundação para o Desenvolvimento da Educação – FDE. Na sua edição 488 CONTATO registrou:

Condenado judicialmente por ato de improbidade administrativa, a imprensa questionou o governador Geraldo Alckmin sobre as razões que o levaram a indicar o engenheiro José Bernardo Ortiz para a presidência da Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE), responsável por um orçamento de R$ 3,5 bilhões para 2011. Afinal, Ortiz responde a dez ações judiciais, oito delas por atos que teriam violado a Lei 8429/92, que pune administradores públicos por transgressão aos princípios do artigo 37 da Constituição, moralidade, impessoalidade e economicidade”.

Estava aberto o caminho para a redenção política dos Ortiz depois das derrotas sofridas em 2008 (para prefeito) e em 2010 (para deputado federal). E Ortiz Júnior não perdeu tempo. Segundo o ministro do TSE Herman Benjamin, relator do processo naquela suprema corte eleitoral, “José Bernardo Ortiz Monteiro Júnior era o presidente de fato” da FDE. Sem ocupar formalmente qualquer cargo naquela instituição, o filho do então presidente participava do dia-a-dia da Fundação e até decisões que envolviam compras milionárias.

Herman Benjamin

Herman Benjamin, ministro relator no processo de Ortiz Jr

O pecado original de Ortiz Júnior

Este escriba nunca deixou de reconhecer a boa gestão do prefeito eleito em outubro de 2012. Porém, sempre chamou a atenção para o que denominei de pecado original de Ortiz Júnior: suas estripulias na FDE.

Cinco minutos após o encerramento das eleições em 07 de outubro, antes de apurar qualquer resultado, o promotor eleitoral Antônio Carlos Ozório Nunes protocolou uma representação contra o candidato Ortiz Júnior. Ozório é conhecido pela sua simpatia aos tucanos. Mas isso não o impediu de agir de acordo com sua consciência profissional diante da gravidade das denúncias recebidas. Justificou sua atitude – entrar com a representação cinco minutos após concluída a votação – afirmando que não queria interferir no resultado eleitoral.

Esse episódio deu início a um longo calvário de Ortiz Júnior, concluído na terça-feira, 25 de outubro, com um espetáculo que apequenou nossa Justiça. Esse calvário foi registrado por CONTATO que nunca ouviu respostas convincentes para questões como:

Qual era o papel de Ortiz Júnior na FDE?

Porque Bernardo, o pai, nunca restringiu seus movimentos ostensivos dentro e fora da FDE?

Qual a explicação para a contratação da advogada Gladiwa Ribeiro como chefe de gabinete da presidência da FDE, cujo depoimento se tornaria uma das peças-chave da acusação, mesmo sabendo, como muita gente sabia e sabe em Taubaté, as razões de seu marido assumir seu sobrenome e não vice-versa?

Qual sua versão para a aproximação com o lobista Djalma Santos, representante de empresas fornecedoras de mochilas escolares e que o denunciou junto ao MP?

Como é que o cheque de R$ 34 mil por ele emitido foi parar na conta de Marcelo Pimentel que trabalhou na sua campanha desde 2010, pelo menos, inclusive na campanha de 2012?

Chorando

Lágrimas de crocodilo?

             Conhecendo alguns dos atores desse episódio, fiquei convencido que não haveria saída para o pequeno príncipe dos Ortiz. Diante de provas sólidas e decisões judiciais de autoridades que nada, absolutamente nada tinham contra o candidato, seja por causa das relações pessoais ou por afinidades políticas, minha opinião se consolidou.

Em determinada ocasião registrei que no cristianismo, para quem acredita, o pecado original pode ser eliminado através do sacramento do batismo. Mas a justiça humana não dispõe desse sacramento e, portanto, o pecado não pode ser eliminado. Acreditava que Ortiz Júnior acabaria sendo punido pelo pecado que ele cometera de forma consciente. Ledo engano!

O triste espetáculo do rejulgamento

            No dia 1º de agosto o TSE julgou e condenou Ortiz Jr. CONTATO registrou: “Depois de uma hora de sessão marcada pelo embate jurídico por parte do ministro relator Herman Benjamin e argumentos vazios, porém reveladores, por parte da ala tucana do TSE, prevaleceu a argumentação técnica e contundente do relator. As três ministras – Maria Thereza de Assis, Luciana Lóssio e Rosa Weber – acompanharam o voto do relator”.

Antevendo jogadas só permitidas aos amigos dos poderosos, escrevi: “Mas como se vive em um país onde as leis só agora começam a valer para todos (vide Lava Jato), pode ser que ainda haja algum recurso só acessível por aqueles que desfrutam de acesso privilegiado a esferas inimagináveis ao cidadão comum”.

BINGO!

Nesse momento entra em cena o ministro Gilmar Mendes. Com a maior desfaçatez, ele altera o entendimento do conceito de embargos de declaração, consolidado como jurisprudência.

cheque

Cheque de R$ 34 mil, uma das provas materiais

É sabido que a simples mudança de entendimento do tribunal acerca de matéria já apreciada não permite que embargos de declaração possam alterar o que foi decidido. Isso só pode acontecer se a decisão questionada tiver erro material, omissão, contradição ou obscuridade.

Nessa mesma linha, por exemplo, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça anulou acórdão do Tribunal de Justiça da Bahia, ao acolher embargos declaratórios com efeitos modificativos, inverteu o que havia decidido originalmente.

Portanto, está (ou estava?) consolidado que os embargos de declaração são cabíveis para corrigir omissão, contradição ou obscuridade da decisão judicial. E que uma eventual alteração da decisão só é admitida quando decorre da correção de um desses vícios.

Por isso mesmo, Gilmar Mendes rompe com a tradição do ritual jurídico de preservar seu voto de qualidade para decidir um eventual empate e inicia o debate com ataques aos argumentos do relator ao afirmar: “verifico que há omissão qualificada”, antes de ler seu voto em defesa de Ortiz Júnior, ao pedir que fossem acolhidos os embargos apresentados.

Em primeiro lugar, Mendes rompeu com o próprio regimento interno do TSE que no artigo 9º do seu 3º capítulo define as atribuições que competem ao presidente do TSE:

“a) dirigir os trabalhos, presidir as sessões, propor as questões, apurar o vencido e proclamar o resultado; b) convocar sessões extraordinárias; c) tomar parte na discussão, e proferir voto de qualidade nas decisões do Plenário (grifo meu), para as quais o Regimento Interno não preveja solução diversa, quando o empate na votação decorra de ausência de Ministro em virtude de impedimento, suspeição, vaga ou licença médica, e não sendo possível a convocação de suplente, e desde que urgente a matéria e não se possa convocar o Ministro licenciado, excepcionado o julgamento de habeas corpus onde proclamar-se-á, na hipótese de empate, a decisão mais favorável ao paciente”.

Mesmo assim, aparentemente, estava tudo certo e dentro das regras vigentes. Mas era apenas uma cortina de fumaça (a omissão qualificada apontada por ele) porque o seu voto se baseava em fatos já apreciados por outras instâncias.

Eis a segunda questão, Mendes ignorou e atropelou o entendimento consolidado porque: “1. Os embargos de declaração destinam-se especificamente a aclarar ou corrigir o teor de julgados que contenham vícios relativos à obscuridade, omissão ou contradição. 2. Os embargos de declaração não se prestam para o confronto das razões de decidir do acórdão recorrido com aquelas contidas em quaisquer outras decisões, sejam elas do TCU ou do Poder Judiciário. 3. Não se prestam os embargos de declaração para a rediscussão do mérito nem para reavaliação dos fundamentos que conduziram à prolação do acórdão recorrido”.

Djalma e Vicentin

Lobista Djalma Santos (1º plano) e seu advogado Eduardo Vicentin

Mendes sabe muito bem que o TSE não analisa provas. Mas seu argumento central se baseava em cheque de R$ 34 mil emitido pelo denunciante Djalma Santos e descontado por Marcelo Pimentel, marqueteiro de Ortiz Júnior.

O presidente do TSE sabe muito bem que não se trata do valor por ele menosprezado. Nem tampouco de dar guarida ao argumento apresentado pelo ministro Henrique Neves que, no julgamento de 1º de agosto, insistia no argumento de que o cheque fora emitido um ano antes do pleito eleitoral que elegeu Ortiz Júnior.

O relator Herman Benjamin cansou de chamar a atenção sobre o risco do que seria uma nova jurisprudência caso a corte endossasse o que Neves estava propondo. Em síntese, o relator afirmou que não poderia aceitar a tese de lapso temporal (ou desconexão temporal) entre os fatos e alertou que como sua consequência o ilícito seria eliminado. Grosseiro, Mendes reduz a argumentação do relator a “meras conjecturas”.

Em terceiro lugar, a decisão de passar por cima do julgamento anterior põe em cheque o próprio estado democrático de direito porque despreza valores consolidados em leis. Ou seja, essa decisão abre uma brecha por onde a leis passariam a ser criadas a qualquer momento exatamente por aqueles que têm o dever, a obrigação de cumprir o que já está estabelecido e consolidado em nossa legislação.

Conclusão

O resultado favorável a Ortiz Júnior no julgamento dos embargos de declaração na noite de terça-feira, 25, compromete a imagem da Justiça. A situação se torna ainda mais grave quando se configura um “rejulgamento” de uma causa já julgada.

O comportamento complacente do presidente do TSE com essa aberração jurídica chegou ao ponto de permitir que o advogado de defesa de Ortiz Júnior fizesse uso da palavra para reforçar argumentos que estavam nos autos. Esse episódio pode ser revisto no link da gravação da sessão do TSE de terça-feira, 25.

Além de atropelar o regimento do próprio TSE quando define as atribuições do presidente daquela corte, Gilmar Mendes criou novos conceitos como “omissão qualificada” para justificar seu voto. Será que algum jurista se lembrará de solicitar-lhe, com a devida vênia, que explique ou traduza o que quis dizer com omissão qualificada?

Napoleao

           Napoleão Maia substituiu Maria Thereza de Assis no TSE e absolveu Ortiz Jr

            Fiquei mais impressionado com a rapidez com o que os ministros Napoleão Nunes Maia Filho, Henrique Neves e Luiz Fux absorveram o novo conceito e passaram a repeti-lo como justificativa daquele triste espetáculo. Um espetáculo revelador da necessidade de se colocar ordem no Poder Judiciário.

Eu não acreditava que Ortiz Júnior fosse capaz de reproduzir a estratégia do deputado federal Paulo Maluf (PP), empregada com sucesso nas eleições de 2014. Doce ilusão. Como diria o poeta, “há razões que a própria razão desconhece”.

Talvez ajude a esclarecer a explicação dada pelo novamente prefeito sobre seu julgamento na entrevista coletiva que ele deu na quinta-feira, 27: “Eu não tenho dúvida nenhuma de que a grande realização dessa reparação da injustiça é a realização do milagre de Deus. Não tenho dúvida porque foi muita fé. Me trouxe a luz que manteve minha fé e iluminou a cabeça do ministro [Napoleão Maia] que substituiu [a ministra Maria Thereza de Assis]”.

Crédito: Murilo Cunha

Ortiz Jr e o vice Edson na coletiva de quinta, 27: “milagre”

            O resultado do “rejulgamento” comprova, de certa forma, a opinião do jurista Conrado Hubner, professor-doutor da Faculdade de Direito da USP: “O STF [e o TSE, na minha opinião] se fez ingovernável e permanecemos indiferentes e reféns dessa prática”.

Não há luz no fim do túnel!