Todos somos donos de esquisitices, algumas mansas, outras nem tanto. Coleciono bizarrices, mas uma em especial me cativa: um diálogo intermitente, meio tonto e bem torto, com um amigo com quem, de quando em vez, troco confidências por telefone, durante madrugadas. Até aí, pouco ou nada de excepcional, pois há grupos que, encorujados, preferem falar no escuro. Sou desses. Cultivo os mistérios e complicações da noite. O realmente inusitado é que ao longo de anos desenrolamos um papo sobre galos. Sim galos, os machos das galinhas. Diria que tudo começou certa madrugada quando eu, morador de Copacabana, ouvi um nas vizinhanças lardeando a manhã que haveria de ser. Também isso não chamaria tanto a atenção não fosse o interlocutor, Renato Teixeira. Sim, ele mesmo o contador de causos versejados
na intimidade do mundão interiorano, rururbano.
Pois é, dia desses seletava músicas deste meu bardo preferido quando notei menção ao retumbante cocoricó. “Raízes”, é o nome de uma composição que se irrompe faustosa: “galo cantou/ madrugada na campina/ manhã menina/ tá na flor do meu jardim/ hoje é domingo/ me desculpe eu tô sem pressa/ nem preciso de conversa/ não há nada pra cumprir”. Pronto, estava pautado mais um desafio interpretativo. Como pode alguém sintetizar dilemas tão complexos, inscritos na modernidade: o galo da campina alheio às convenções; o andamento desacelerado dum domingo; o mundo do trabalho descontinuado por direito ao descanso…

Renato Teixeira é interlocutor de Mestre Sebe nas madrugadas insones

Com cabível exagero, questões da atualidade brasileira poderiam dar contornos hipotéticos a um riscado sociológico que confronta: a tradição rural com o tempo da produção capitalista; o campo com a cidade; a natureza com a lavoura em escala, e o trabalhador no jogo de tensões. E, não bastasse, no caso dessa composição, o galo impávido, indiferente ao calendário, louvando o dia que se repete cadente. Isto só bastaria para digressões capazes de nutrir compêndios, mas nossas conversas sobre o regente do galinheiro motivavam outros papos, pois afinal, a filosofia caipira brota de sementes nostálgicas.
Evocando o parceiro Almir Sater, certa feita, gastamos horas falando da potência dos imponentes que não aceitam concorrência amorosa. Será que o decantado machismo que nos distingue brasileiros se engalanou daí? “Reis do terreiro”, os galos dão conta de damas apaixonadas e é de suas galas que se firma uma fonte de renda motivadora de exportações internacionais. E nessa saga elogiosa exaltamos também sua plumagem mais exuberante e plural do que as delas; a garbosidade senhoril ostentada sem pudor algum, e não nos esquecemos das esporas sempre afiadas e ameaçadoras.
E somamos tantos predicados que me pus a questionar por que, em certos casos, os galos são relegados em prosa e versos. É verdade que há listas de piadas picantes, marchinhas tinhosas e nomes de blocos carnavalescos e até referências à bebidas alcoólicas (ah! os ‘rabos de galos’), mas são as donas dos “ovos de ouro”, desde antes de Esopo, as premiadas com narrativas laudatórias – aliás, gosto imenso de um conto de Clarice Lispector intitulado “Uma galinha” e que dizer das crônicas de Luis Fernando Veríssimo: “Ladrão de galinha”, “A decadência do ocidente”, “A crônica e o ovo” e o hilário “A Páscoa”?


Há algo de mais perturbador na retomada, digamos ontológica, do galo, da galinha e dos ovos na modernidade brasileira. Explico-me formulando um novo teorema que carrega um conteúdo metafísico importante para quantos se preocupam com as tecituras éticas e morais da comunicação na sociedade de massa. Primeiro aventei a possibilidade de triunfo do discurso feminista que elidia o macho da popular equação “o que vem primeiro, o ovo ou a galinha”. E não canso de me espantar com o apagamento do desencantado macho, esquecido como se tudo houvesse que haver apenas com a “galinha pintadinha” e seus ovos. E o galo, onde teria ido parar? Incômoda pergunta, né? Sem resposta indicativa, então desdobram-se suposições que acabam por revelar a exclusão do macho como se fosse dispensável. Mas, como vingança da natureza, sem ele, não se consegue definir o ponto de partida, pois não se sabe da primazia.
A par de enigmas discursivos, livre de conjunturas emaranhadas, o próprio Renato Teixeira sugere um deixa disso. Basta respeitar a natureza que mostra “a luz invadindo a terra” e mais, rebate complicações fabricadas no escuro que “a noite não revela” e segue salientando as contradições entre a tradição e a modernidade lembrando que no domingo masmorrento a “rádio agora tá tocando Rancho Fundo” e, por fim, conclui pela solidão da modernidade sertaneja “somos só eu e o mundo” e graças ao galo que anuncia que “amanhecer é uma lição do universo/ que nos ensina que é preciso renascer/ o novo amanhece/ o novo amanhece”. Simples assim..