É abril e outra vez o desafio de falar sobre Monteiro Lobato se apresenta. Transformado em polêmico autor, sua inquestionável obra se apresenta como pomo de discórdias. Sabe-se que sempre foi assim, que tensões jamais deixaram descansar a vida e a obra do “pai da literatura infantil brasileira”. Polêmicas a parte, vale recobrar aspectos menos conhecidos da biografia do “taubateano rebelde” e entre tantos aspectos um começa chamar a atenção: a intimidade de sua pintura.

A figura pública de Monteiro Lobato — escritor combativo, editor visionário, militante incansável — ofuscou por décadas sua faceta mais reservada de artista plástico. Enquanto sua literatura solar e suas campanhas nacionais ecoavam estridentes, uma produção pictórica melancólica e discreta fluía em paralelo, como contraponto necessário ao barulho do mundo. Essa dualidade revela um Lobato mais complexo do que sugere sua imagem canônica, um criador dividido entre o engajamento público e a necessidade de recolhimento criativo.

Aquarela da casa onde nasceu em 1982, hoje um museu

Nascido em Taubaté dia 18 de abril de 1882, José Bento, o “neto bastardo” do Visconde do Tremembé, carregava desde a infância o peso de expectativas contraditórias. Se por um lado tinha acesso privilegiado a livros e educação, por outro via sua vocação artística — manifesta aos dez anos em desenhos oferecidos à avó — ser tolhida pelas obrigações da primogenitura. Esse conflito entre dever e desejo moldaria para sempre sua relação com a arte: se a escrita se tornou seu instrumento público, a pintura permaneceu como refúgio íntimo, território onde podia reconciliar-se com as paisagens perdidas de sua infância no Vale do Paraíba.

Curiosamente, enquanto contemporâneos taubateanos como Clodomiro Amazonas (pintor de temas históricos e retratos oficiais) e Georgina de Albuquerque (pioneira feminina nas artes plásticas brasileiras) seguiam carreiras artísticas convencionais, Lobato trilhava caminho inverso. Seus companheiros de infância tornaram-se artistas profissionais reconhecidos, enquanto ele, talvez o mais talentoso do grupo, via a pintura ser relegada a atividade marginal — embora nunca abandonada. A comparação com Almeida Júnior, mestre da pintura caipira que capturou com rigor técnico o interior paulista, revela caminhos divergentes: enquanto aquele se dedicou exclusivamente às artes visuais, Lobato fragmentou-se entre múltiplas vocações, deixando sua produção pictórica como testamento íntimo de um talento que optou por outras arenas.

Na maturidade, esse paradoxo se acentuou. Enquanto sua literatura abandonava progressivamente temas rurais em favor de projetos nacionalistas, suas telas insistiam em cenas bucólicas — fazendas, riachos, porteiras solitárias — como quem preservava em segredo o mundo que ajudava a transformar publicamente. Mesmo em paisagens urbanas de São Paulo ou Nova York, seu olhar isolava a arquitetura da agitação humana, observando a modernidade à distância, com a nostalgia de quem já se sabia estrangeiro em seu próprio tempo.

Porteira aberta, aquarela dedicada a Dona Purezinha

As mais de duzentas obras sobreviventes — entre elas o tocante retrato de Purezinha, naturezas-mortas discretas e paisagens serenas — revelam um artista tecnicamente conservador, filiado à tradição acadêmica do século XIX, mas profundamente pessoal na escolha temática. Executadas em materiais precários (papelões reaproveitados de caixas de chapéu, pedaços de madeira descartados), essas peças sugerem menos um hobby que um ritual necessário de equilíbrio interior, prática quase confessional que acompanhou Lobato por toda a vida.

O verdadeiro valor dessa produção não está no que poderia ter sido, mas no que revela sobre o homem por trás do mito. Nas pinceladas calmas que contrastam com seu verbo inflamado, nos temas nostálgicos que dialogam com seu projeto modernizador, descobrimos um Lobato mais humano e contraditório. Se sua literatura foi o grito que ecoou no Brasil, sua pintura foi o sussurro reservado à própria alma, linguagem íntima onde podia ser apenas Juca, o menino de Taubaté que sonhava com pincéis antes de carregar o peso de um sobrenome e de uma nação.

Nos anos finais, quando desilusões políticas se acumulavam e o Brasil que ajudara a imaginar parecia fugir entre seus dedos, esses momentos de criação silenciosa talvez tenham sido seu verdadeiro porto seguro. As telas sobreviventes são testemunhas mudas de uma batalha íntima entre o artista que foi e o polemista que precisou ser. Entre o ruído das polêmicas e o silêncio do ateliê caseiro, Lobato pintou não para a posteridade, mas para si mesmo — e nessa recusa à grandiloquência, nessa fidelidade ao olhar pessoal sobre o mundo, reside sua mais comovente lição de autenticidade criativa.