Sites bolsonaristas divulgam dados científicos falsos sobre Covid-19, compartilhados depois por parlamentares

Uma das frentes de investigação da CPI da Covid, a desinformação sobre a doença no país é marcada pela distribuição de mensagens falsas que simulam e falsificam a linguagem científica, fenômeno conhecido como “fake science” (ciência falsa, em inglês). O alerta é de um estudo realizado por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Federal Fluminense (UFF) que identificou o uso da estratégia em ao menos 57 publicações feitas por 38 sites, a maioria bolsonarista, ao longo da pandemia. O GLOBO apurou que parte desses textos foi divulgada, inclusive, por parlamentares da base do governo.

Essas publicações, no formato de reportagens jornalísticas, se valem de estratégias variadas: garimpam estudos científicos reais e distorcem seu conteúdo, usam dados preliminares como se fossem definitivos ou citam informações não verdadeiras para promover remédios ineficazes contra a Covid-19, como a ivermectina e a cloroquina.

Também há exemplos de lançamento de dúvidas sobre vacinas, além do combate ao uso de máscara e ao distanciamento social, em uma retórica semelhante à adotada pelo presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores. Alguns sites responsáveis por esses conteúdos já são alvo do inquérito das fake news no Supremo Tribunal Federal (STF).

Deputado Federal Hélio Lopes (PSL), sub tenente do Exército, divulgador de fake news

DINÂMICA SOFISTICADA

Coordenadora da pesquisa, que foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a professora da UFRJ Rose Marie Santini destaca que, na pandemia, a “fake science” ganhou escala, velocidade e volume jamais vistos. No caso do Brasil, as mensagens falsas foram disseminadas e amplificadas por políticos e influenciadores, além de canais institucionais oficiais do governo.

— A dinâmica de disseminação da “fake science” ficou mais sofisticada. Os sites de desinformação passaram a publicar “fake science” para embasar argumentos mentirosos sobre a pandemia. Portanto, tanto as notícias falsas sobre ciência como artigos científicos falsos passaram a ser massivamente compartilhados nas redes sociais. Isso demonstra que a indústria de falsificação de informação passou a afetar a ciência como vem afetando o jornalismo.

O site com mais conteúdos publicados, segundo o levantamento, é o Estudos Nacionais, com sete. A plataforma foi fundada pelo jornalista Cristian Derosa, que se apresenta como aluno do curso do ideólogo de direita Olavo de Carvalho, e já foi alvo de campanhas de desmonetização do movimento Sleeping Giants Brasil, que alerta as empresas sobre anúncios em sites desinformativos. Em junho, a audiência do Estudos Nacionais chegou a 410 mil visualizações, segundo a plataforma SimilarWeb.

Em um dos casos de “fake science” levantados, o Estudos Nacionais afirma que a vacina contra a Covid-19 desenvolvida pela Universidade de Oxford em parceria com a AstraZeneca “é produzida a partir de células de bebês abortados”.

Senador Eduardo Girão (Podemos) divulgador de fake sciences

Conteúdo falso semelhante sobre a Coronavac foi divulgado nas redes bolsonaristas e chegou a ser citado pelo senador Eduardo Girão (Podemos-CE) em uma sessão da CPI em maio.

Também compõe a lista o site bolsonarista Terça Livre, do blogueiro Allan dos Santos. Em novembro de 2020, o site divulgou a afirmação falsa de que um artigo publicado no jornal acadêmico Nature Communication comprovou que assintomáticos não transmitem o coronavírus. Em média, o Terça Livre tem mais de 1 milhão de visualizações mensais e está presente também nas redes. Na quinta-feira, o canal do site foi removido do YouTube, após uma decisão judicial, por violar diretrizes da plataforma.

Outro site bolsonarista relevante nesse cenário é o Brasil Sem Medo, que tem tráfego de mais de 500 mil visitantes em média e também é comandado por apoiadores de Olavo de Carvalho. Em janeiro, o portal publicou dados de uma pesquisa da Universidade de Liverpool, no Reino Unido, sobre a eficácia da ivermectina, sem indicar que a análise era preliminar. O conteúdo foi compartilhado pelos deputados federais Hélio Lopes (PSL-RJ), Otoni de Paula (PSC-RJ), Marco Feliciano (Republicanos-SP), Daniel Silveira (PSL-RJ) e pelo deputado estadual Delegado Francischini (PSL), do Paraná.

Osmar Terra, deputado Federal (MDB) queria ser ministro da Saúde e divulgou fake news

IDENTIDADE PERDIDA

Os pesquisadores da UFRJ e da UFF também identificaram 22 links para bancos de dados científicos falsos. Os links estão em inglês e foram compartilhados em grupos de WhatsApp e Telegram no Brasil. Todos utilizam a ferramenta canadense de anonimato Tucows Domains para não revelarem sua identidade. Os conteúdos não foram aprovados em nenhuma revista científica e não há comprovação de revisão por pares sobre o método utilizado.

Um desses sites, que reúne informações falsas sobre ivermectina, foi publicado 978 vezes em 1.074 grupos de Telegram monitorados pelos pesquisadores. Já em outros 149 grupos bolsonaristas no WhatsApp, também acompanhados, o estudo localizou mais de 500 publicações. Autointitulado apenas como Ivmmeta, o portal possui uma seção de cunho político em que critica o fato de o Twitter ter aplicado em janeiro um alerta em uma postagem do perfil do Ministério da Saúde brasileiro por publicar um conteúdo que estimulava a adesão a tratamentos contra a Covid-19 sem eficácia.

A identificação e responsabilização dos envolvidos na disseminação de desinformação é alvo da CPI da Covid. Uma das linhas de apuração é mapear perfis e influenciadores digitais responsáveis por ampliar o alcance de conteúdos antivacina e dados falsos sobre a doença. Até o momento, foram encontrados pela comissão casos envolvendo 68 contas e 17 influenciadores. Três assessores do Palácio do Planalto apontados como parte do chamado “gabinete do ódio” já tiveram seus sigilos quebrados.

Deputado federal Daniel Silveira (PTB), PM, divulgador de fake news, levou sua mãe pedir desculpas ao ministro Alexandre de Moraes do STF ameaçado pelo parlamentar

A outra linha é analisar os efeitos da desinformação no tamanho da pandemia no país. Uma das estratégias será cruzar declarações de autoridades e notícias falsas, como incentivo ao descumprimento de medidas para conter o avanço do vírus, e os números de mortos pela doença.

— Não existe dúvida de que a CPI precisa se debruçar sobre publicações feitas através de subsídio governamental para sites, blogs e perfis que desinformaram o cidadão na crise — disse o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE).

O GLOBO questionou parte dos sites identificados pela pesquisa sobre os casos de desinformação. Apenas o Brasil Sem Medo e Estudos Nacionais responderam. Ambos negaram que seus textos distorcem estudos científicos.

PS: Essa reportagem foi veiculada hoje, 18/07/2021 no jornal OGlobo