No dia 17 de abril de 2016, tomei uma decisão aguda: guardaria minha tristeza na gaveta mais escondida de meu silêncio político, e resignado lançaria a chave imaginária no oceano das tais ilusões perdidas. Era demais enfrentar novo impeachment – dois em uma geração que começou votar para presidência com mais de 40 anos de idade. E inventariava minha tristeza considerando prematuro supor que a longa noite de 21 anos, a sutil, mas não menos cruel ditadura, havia passado. Confesso que foi alentador viver os fátuos mandatos de esperança que se seguiram ao declínio militar. Mesmo com limites, não há como negar as benesses de mudanças e a ventilação de possibilidades de se ter um país com menor número de pessoas abaixo da linha de pobreza, com respeitos, menos misógino e mais acolhedor. Os dias que se seguiram àquela fatídica sessão da Câmara – as semanas e anos – foram acentuando diferenças entre os que viam ameaças à democracia em contraste com discursos populistas baseados em fatos fabricados. Eu calado assim, no fundo das mágoas contidas, não conseguia acreditar nos ecos crescentes e entoados de tantos queridos: amigos, parentes, vizinhos. Tristíssimo, não me autorizava pronunciar contraditório algum, até porque a corrente avassaladora que ganhava força me era incompressível e expressa em manifestações capazes de misturar piadas com ações patrioteiras, ataques nutridos de fake news.
E veio o governo Temer. E veio o embalo das novas eleições. E ampliaram-se as manifestações radicais que jogavam uns contra outros, tudo com muita raiva e sede de vingança. As ruas se encheram das cores da bandeira, bateu-se panela, os hinos cívicos e os ditos excludentes se fizeram berros. Qualquer um que não marchasse na cadência das ordens daquela exalação seria considerado bastardo, traidor da moral e defensor de bandidos. Tudo em nome do combate à corrupção, à moral familiar ofendida pelo louvor às diferenças. Agigantava-se um produto de uma versão religiosa fundamentalista que se vangloria de ser “terrivelmente cristã”. Terrivelmente… Mas, na medida em que o ódio se naturalizava como virtude cívica, fui sentindo que precisava fazer alguma coisa. Precisava, mas não tinha forças suficientes até que se aproximaram as últimas eleições, e então busquei escafandro e mergulhei no encalço da chave perdida e, de posse, ousei abrir discretamente a tal gaveta. Falei um pouco, talvez menos do que deveria, mas bradei o suficiente para reafirmar Cecília Meireles no verso Punhal de Prata: “A maior pena que eu tenho/ punhal de prata, não é de me ver morrendo/ mas de saber quem me mata”. Entre os que “me matavam” estavam amigos queridos, irônicos, tão auto sonantes em desprezos.
A realidade dos fatos vagarosamente foi mostrando que eu não estava tão equivocado. Vendo os verbos presidenciais sendo conjugados fora das gramáticas políticas e da decência, novamente, percebia a graça da história. Definitivamente, pela escrita, deixei o pacto de silêncio e recuperei a crença popular garantidora de que o peixe presidencial morreria pela boca. Mas não foi sem dor que fui vendo desbotar os devaneios contrários. Sofria pelo preço pago por todos. Tudo seguia seu curso, diria. Aconteceu, porém, esta semana uma série de absurdos que me obrigam a constatar os percalços e ver que há esperanças. Como resposta a um eloquente “não dá mais”, somaram-se impropérios que, em conjunto, animam pensar que o avesso da sensatez está promovendo a longa virada. Vejamos alguns lances que dignificam o que penso:
“Se não puder ter filtro, vamos extinguir a ANCINE”
“(Miriam Leitão) estava indo para a guerrilha do Araguaia quando foi presa. E depois conta um drama todo, mentiroso, que teria sido torturada. Mentira”
“Daqueles governadores de… paraíba, o pior é o do Maranhão”;
“Já mandei ver quem está a frente do INPE para que venha a Brasília explicar estes dados que foram enviados à imprensa”, e, não bastasse, declarou suspeitar que o Diretor do INPE estaria “à seviço de alguma ONG”;
“…falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não se come bem, aí eu concordo. Agora passar fome, não. Você não vê gente, mesmo pobre, pelas ruas com o físico esquelético como se vê em outros países pelo mundo”
No primeiro caso, trata-se de censura impensável em qualquer democracia. Não cabe ao mandatário do estado definir o que é correto para a moral pública. Além disto, existem os “filtros legítimos” permitidos pelos limites de idade. E seria tão recomendável que o emissor de tal bobagem soubesse o que é e o que não é pornográfico.
A frase sobre Miriam Leitão além de ser falsa, mentirosa, dimensiona o esforço de limitação da opinião pública. Replicando a censura, o dizer presidencial quer acabar com a opinião crítica e impor o pensamento único (desde que o pensamento único seja o dele). Convém lembrar que isto foi dito em resposta a um questionamento feito em ato oficial, frente à imprensa estrangeira.
O ataque deferido contra o governador do estado do Maranhão é gravíssimo, não apenas pela discriminação àquele estado, mas a todo o bloco do Nordeste. A agravar tudo, a depreciação contida no termo “paraíba” revela a carga indisfarçável de preconceito que, expresso pelo presidente da República, derruba os limites do suportável.
Cientista Ricardo Galvão, diretor do INPE, foi destratado por Bolsonaro
Além de contestar dados oficiais, emitidos por agência do próprio governo, o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, órgão do Ministério de Ciência e Tecnologia), foi sugerido que haveria uma série de ONGs interessadas em forjar informações a favor de interesses estrangeiros. Lembremos que isso foi dito no momento em que alguns países patrocinadores de ajuda a Amazônia (Noruega e Alemanha) questionam o andamento das políticas de meio ambiente.
Também como resposta, a referência ao número de pessoas que passam fome, revela o despreparo e a desinformação do mandatário. Os totais revelam aumento assustador de contingentes famélicos desde 2017. Convém notar que as estatísticas são oficiais e dão conta que 5,2 milhões de pessoas no Brasil passaram um ou mais dias sem consumir alimentos, segundo levantamento feito por agências da ONU.
Embaixada nos EUA: “se eu puder dar filé mignon para o meu filho, eu dou”
Se, contudo, me fosse dada a tarefa classificatória do pior emitido pelo presidente, a campeã não seria nenhuma destas pérolas. Acima de todas as demais, desdobramento da absurda nomeação do filho, o tal 03, para a embaixada brasileira nos Estados Unidos, ganharia o troféu: “se eu puder dar filé mignon para o meu filho, eu dou”. Sei que o caminho é longo. Em igual proporção estou ciente que serei chamado de esquerdista, comunista ou petista. Mas tudo vale a pena para acolher os democratas, aqueles que acreditam que vamos soltar a voz democrática.