Oscar V. Sachs Jr.
À jornalista taubateana Stela Sachs
Minha querida Stela, também me emocionei com o relato da neta do Antonio Cândido, na Folha. Mais ainda, naturalmente, com o que você escreveu, no Face, sobre a ligação de sua mãe, a professora Sonia Sachs, com o grande crítico literário, ícone de uma geração. Li também hoje, 21/05, no caderno “Ilustríssima”, memórias de um editor que pediu prefácios ao mestre, que relutou, mas não pôde negá-los.
Tentei acrescentar alguma coisa ao seu comentário, mas a emoção foi forte, só consegui mandar aquela figurinha de que tinha gostado do que você escreveu. Com o inverno chegando, aqui no Tremembé, sozinho, sem as cuidadoras de idoso, me atrevo a falar um pouco mais.
Sim, ela foi aluna do Antonio Cândido no curso de Letras Neolatinas da Faculdade de Filosofia e um dos orgulhos dela era ter tido nota máxima num trabalho de crítica sobre um poema de Manuel Bandeira, “As três mulheres do sabonete Araxá”, que o Mestre leu em classe.
Aquela moça bonita que fazia o último ano do curso tinha conhecido o presidente do Grêmio da Filosofia e os dois tinham se enamorado e casado.
Bacharelada e licenciada, ela quis, pediu e o professor Antonio Cândido aceitou que fizesse com ele o curso e a defesa de mestrado, o que era um privilégio, pois ele já diminuíra suas atividades. Mas, grávida do primeiro filho e já tendo uma gravidez perdida, ela teve que guardar repouso quase absoluto. O professor ainda insistiu, gostaria que ela continuasse na pós-graduação, mas não foi possível.
Morando em Santo André, Sonia foi dar aulas no colégio estadual. E incrementou também a carreira de mãe, com o segundo filho e a primeira menina. Continuou dando aula de português no colégio, o que incluía, lógico, literatura brasileira.
Quando a família veio para Taubaté, ela foi dar aula num instituto que era dirigido por um padre. Durou pouco. Ela mandou os alunos lerem, durante o ano, três ou quatro livros. Alguns pais reclamaram que era demasiado para os filhos e o padre – talvez com medo de perder alunos, talvez por alergia à cultura – despediu a professora. Acho que foi um dos momentos em que ela mais precisou de um ombro amigo, que estava ali ao lado dela.
Bom, né? Ai veio a gravidez inesperada, com as peripécias que você conhece. E você chegou.
Neste meio tempo, não me lembro bem das circunstâncias, foi pedido a ela que fizesse a bibliografia do professor Antonio Cândido. Ela consultou as bibliotecas de São Paulo, acho que a hemeroteca da Municipal e outras fontes, e – sem computador e recortando e colando tirinhas de papel quando descobria um novo texto – preparou o trabalho.
Antônio Cândido de Mello e Franco, morto recentemente
Mais tarde, quando o professor se aposentou, iam fazer um livro com depoimentos sobre sua obra, o que incluiria um trabalho sobre sua bibliografia. Acho que ia ser publicado pela Hucitec, uma editora dedicada a assuntos acadêmicos, mas aí a memória me falha.
Consultado sobre quem poderia preparar a bibliografia, Antonio Cândido disse que queria “aquela moça, ex-aluna dele, que tinha feito um belo trabalho, com dados que até ele tinha esquecido”.
Bom, agora Sonia possuía um computadorzinho que seria um carro de boi comparado a uma das Ferrari de hoje em dia, mas ajudou muito. Ela ampliou bastante a pesquisa, algumas vezes indo até a Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro, e fuçando o Arquivo Histórico de São Paulo, as hemerotecas e todas as fontes que se pôde imaginar. O livro saiu, ela como co-autora, ao lado de Fernando Henrique, Otávio Ianni, Aderaldo Castelo e outros luminares das letras e da sociologia.
Ela a esta altura dava aulas de português na Unitau, quando descobriram que os calouros chegavam à universidade sem saber escrever em português e criaram um curso genérico para todas as faculdades. Ela deu aulas no Curso de Psicologia.
Instigada pelo marido, Sonia se inscreveu num curso de mestrado, coordenado e ministrado pelo professor Neif Sáfadi. Foi a única que terminou o curso, defendeu tese e recebeu o título de Mestre.
Quando descobriu que o título só valia interna corpore, ou seja, só entre os muros da Unitau, voltou à USP e fez outra vez o curso de mestrado e a defesa de tese, sendo então Mestre por sua casa de origem. Foi comprado um pequeno apartamento em São Paulo, para ela enfrentar o doutorado, sob orientação de uma professora que se tornou uma grande amiga, a Dra. Cleusa.
Sônia Sachs, em 2008
Na defesa de tese de doutorado, uma curiosidade: alguém da banca, motivado por um neologismo de Mário de Andrade, em um item da tese, perguntou o que ela consultava para validar um vocábulo. Ela citou os diversos dicionários que tinha à disposição e disse que, em dúvida, consultava o marido. E apontou, para risos gerais, um cidadão que estava na plateia.
Antes ainda do doutorado, ela soube que ia haver um concurso para professor de literatura brasileira, no curso de letras da Unitau, e na última hora se inscreveu, sem saber que a cama estava preparada para um professor da casa, bastante limitado e sem títulos, mas com padrinhos fortes (mas os lances dessa inscrição e o voto de desempate a favor dela, pela pró-reitora Maria José, são outra história). Ganhou o concurso.
Professora concursada de literatura brasileira, dava aulas também de teoria literária, e os alunos a detestavam ou a idolatravam, por sua rigidez e eficiência. Os que souberam aproveitar ainda se lembram dela com muito carinho, confirmando que seu método formava professores, não apenas lhes conferia um diploma.
Outra vez, meio que por acaso, pediram que ela desse o nome para completar uma lista tríplice como candidata à diretoria do curso. Eleita para sua própria surpresa, continuou com as aulas para a turma do último ano. Foi um período atribulado, em que muitas vezes precisou do velho ombro amigo.
Sua carreira, como professora, terminou aí. Chamada pelo reitor Nivaldo Zoellner, foi nomeada pró-reitora de Expansão Cultural, cargo em que fez muitos amigos e enfrentou outros que jogavam pedras, por interesses contrariados. É a vida.
Quando deu por terminada sua missão e se aposentou, quis dirigir sua capacidade de trabalho para outra atividade, talvez recomeçar a escrever sobre teoria, crítica e história literária. Seu marido a incentivou, lembrando que poderia fazer uma série de artigos, que começariam revisitando a crítica do poema de Manuel Bandeira, sobre as mulheres do sabonete Araxá.
Não deu tempo. O glioblastoma estava só espreitando a hora de se manifestar. Foram dois anos e meio de exames, exames, exames, duas cirurgias no cérebro, duas radioterapias, duas químios, uma infinidade de consultas, muitos e inúteis remédios. Apagou-se a luz.
O professor Antonio Cândido teria feito com alegria o prefácio do livro.