Para Renato Teixeira

Cheguei de longa viagem. Torpor. Mil detalhes atrasados. Como tantas outras vezes repeti: nossa, preciso de novas férias. Era uma pilha de contas, outra de questões de trabalho e a correspondência cumulada. Não bastasse a demanda, uma caixa grande, cuidadosamente embrulhada, com dois carimbos arregalados, olhava pacientemente para mim. Sim, estava curioso, mas era uma curiosidade paciente, postergável. Deixei-a no aguardo, resolvi boa parte dos rolos e por fim me permiti uma pausa. Fazia calor, o vinho branco suado era promessa. E foi o que bastou. Como se o espírito engarrafado mudasse de frasco, senti-o em mim. Olhei o pacote e, nem tão mansamente, peguei uma tesoura e parti para a caixa. Abri. Era um presente. Assustador…

“Formidável”, foi a primeira palavra aflorada. Formidável no sentido Kantiano, como algo que não se satisfaz em dicionários, grandioso, sublime muito mais que surpreendente. “Meu Deus”, foi a segunda golfada. Em minhas mãos um livro/estojo raríssimo. A capa dizia tudo: “Luiz Gonzaga 110 anos”, com desenho encravado em fina reprodução de fundo de couro. Beleza pura. Pandora teria o que aprender com o surtido material colocado estrategicamente sobre um livro de mais de 400 páginas.

Reproduções e mais reproduções dimensionam o que pode ser considerado material de um museu pessoal do Rei do Baião: a carteira com cartão de crédito, uma nota suposta no valor de 110 (anos), a cédula de identidade, cartazes, inclusive o maior em tamanho natural, propaganda de shows e outras delícias. Cuidadosamente elencados em ordem cronológica catálogos com todas as gravações daquele que é apontado como “o maior artista do Brasil de todos os tempos”.

E haja paixão. Desde os 9 anos de idade, menino ainda Paulo Vanderley colecionou fotos, informações variadas, incontáveis entrevistas e milhares de detalhes sobre a experiência de quem, respeitosamente, chama de “Seu Luiz”. E tanto apego não é sem genealogia, pois o pai, como ele, também funcionário do Banco do Brasil, fora amigo do sanfoneiro “Lua”. É evidente que a orgulhosa nordestinidade ambienta linhagens continuadas, de pai para filho, pois além do falante Paulo Vanderley, sua família se trançou no projeto amparado por uma coleção de patrocinadores.

Olhando bem, entrando no livro/estojo como se deixa conduzido por um guia sabido, dá-se o entendimento do agitado mapa da vida do Gonzagão na nossa vida. Sabedor do que quer dizer, o autor percorre etapas atribuladas de um mocinho que sai de casa para ser artista e se torna senhor. Mil peripécias no caminho. Contando causos e mais causos, fiando reportagens, recortando entrevistas, cartas, bilhetes, a vida do Rei do baião é revelada. O que se conclui é que Luiz Gonzaga foi fecundo inventor de um cancioneiro que consagrou a sanfona, fazendo do baião e de suas variações trilha sonora de um Brasil que precisou aprender a se ver no espelho com outra cara.

Cansado de reconhecer belezas em livros e biografias, tenho que cavar muito para dizer que este é um livro/estojo soberano, Rei mesmo, como Gonzagão foi. A pesquisa não só é inigualável, mas cai como o mais garboso gibão de couro enfeitando um corpo imortalizado na sensibilidade nacional. É sim homenagem, mas não é só laudatório, pois fala de momentos difíceis, tristes com pontas de mágoas como quando foi barrado em um clube que só permitia brancos. Com competência e graça polissêmica, o texto atravessa as esperadas agruras das primeiras vezes: do parceiro de estreia, da primeira gravação, do amor inaugural de uma série de outros inícios.

De fato em fato, o livro vai se contando com falas perfumadas pelo bom

humor, simpatia e algumas agulhadas. Conta-se que, certa feita em turnê, encontrou com o então vice-presidente Aureliano Chaves que se mostrou interessado em conhecê-lo. Marcado o encontro, Gonzagão cantando pedia para a autoridade olhar pela região, linda, mas sem água. A passagem do recado mandado ao ladrão de sua sanfona favorita é tão hilária quanto terno é o apadrinhamento de jovens valores como Dominguinhos e a doação de centenas de sanfonas ofertadas aos iniciantes. A dedicação à filha Rosinha e os amores, autorizados e bandidos, se combinam de maneira a explicar o reencontro dramático com o filho Gonzaguinha.

Não pensem que só com texto escrito se satisfaz essa proposta. Não mesmo. A fartura de fotografias e o incrível acesso sonoro é uma das mágicas permitidas. Com o dispositivo de QRCode pode-se ouvir falas, músicas, reportagens. Este estojo, creiam, é um presente completo e, mais que informativo, é uma revolução na imprensa nacional. E tanta coisa não custa muito, aliás. se alguém quiser mais informações veja o endereço: luizluagonzaga.com.br