Fiquei pensando na perversidade de estar só, confinado por opção e obediência ao bom senso. Pensei e logo entendi que pensar é um ato soberano e que se coroa quando nos distanciamos das coisas ditas corriqueiras. Estranho. Sobretudo estranho porque tudo que nos é corriqueiro ganha o vigor inverso, de algo novo ou pelo menos reinaugurado. As coisas, os objetos, estão no mesmo ambiente, mas o olhar interior exige requalificação. Acho o termo “ressignificar” que tanto tem sido gasto faz algum sentido nestas situações.
O livro esteve no mesmo lugar há tempo, e lá continua, mas de repente dou uma olhada na lombada e acho o vermelho bonito, o título em branco se destaca e lembro-me das cores do Salgueiro. Viro o rosto e olho a modesta garrafa de água mineral, a mesma de sempre que acompanha minhas noites solitárias, e me pergunto de sua forma acinturada, da cor da tampinha “amarelada” (não seria melhor que fosse verde?). E o silêncio da casa que combina melhor com a noite que com o dia? As panelas da cozinha experimentaram minhas mãos limpando-as como nunca e sabe, até passei as achá-las mais simpáticas, dignas de certo brilho que nunca leguei.
A cozinha é sempre um grande desafio
Resolvi dar uma limpada nos CDs. Pois é, ainda há poucas semanas pensava em como me livrar deles agora que têm substitutos tão competentes. Mas quando os acariciei em nome da liberdade do pó, me comovi. Lembrei-me de quando comprei uns, da circunstância do presente de outro. Sabe que cheguei, imagine, a me ver dançando nos salões do passado quando peguei em um azul, orquestrado. Nem precisei tomar a decisão de não os doar tão logo. Fui mais longe, cheguei a pensar que alguns não sairiam jamais de minhas paradas saudosistas e nem das prateleiras em que estavam silentes e condenadas.
Converso com plantas. Sempre foi assim e não tenho pejo em reafirmar. Mas eram conversas rápidas coisa do momento de molhá-las e nada mais. Agora?! Agora confidencio intimidades, desabafo mágoas políticas irremediáveis, faço-as interlocutoras de sonhos libertários, de vagos planos futuros. E não é que suas folhas estão mais brilhantes, mais vistosas. Tenho certeza de que a fotossíntese partilhada agora purifica mais meu ar.
Nunca tinha imaginado que os lenços dobrados, na gaveta, pudessem parecer quadros ou instalações artísticas. Nunquinha, mas não é que ontem imaginei Matisse, confesso, contudo, que como estavam tão espontâneas e à vontade, achei que iam mais para Braque. E, meu Deus, não tenho só lenços brancos, ou com discretas listas azuis ou marrons. Não, tenho alguns bem coloridos que sequer sei de onde vieram. E aquele com minhas iniciais, nossa, que lindos!
Acreditem: que beleza me pareceu o suporte do abajur da sala. Que contornos sensuais, delicados e sugestivo da languidez do objeto que deixar vazar luz. Entendi a diferença do erótico e do pornográfico quando supus outra leitura do prosaico detalhe, disposto no canto da sala. Nem preciso dizer que a banqueta de madeira, a mesma que me acompanha desde a primeira casa que tive como minha esposa, me pareceu peça de museu. E de um museu especialíssimo, objeto biográfico capaz de conter narrativas de minha história pessoal.
Os quadros das paredes!… Gente, que coisa mais bonita! Ajeitei um que estava tortinho e pensei na combinação deles. Acertei quando os coloquei lado a lado, e até saudei meu bom gosto e sensibilidade decorativa. Se é verdade que a casa da gente tem que se parecer conosco, aquelas pinturas legitimam minha história. Tentei dar enredo à composição das telas que juntei em diferentes momentos, e fui entendendo melhor minha história pessoal, um depois do outro, alternados na parede, do jeito que me sinto agora. Foi como ordenar as memórias não pelo tempo de aquisição, mas pelos ajustes temáticos.
Criei coragem e fui lá. Sim, mexi na caixa de cartas. Sabia que ia doer, mas sabia também que eram dores de cura. E foram. Fui descobrindo que não restaram só cartas escritas aqui e ali, sempre com amor devoto, mas havia também cartões, cardápios de restaurantes, invólucros de balas, programas de cinema. Enfim, retalhos de um amor que precisou aprender a ser só.
Foi muito duro mexer na caixa com cartas
Foi triste mexer na caixa de joias. O roubo surpreendente do ladrão deixou algumas poucas peças que gritavam de solidão. Ouvi atentamente cada lamento: a medalha que ficou sem o cordão, o velho relógio que certamente não enriqueceria o assaltante, as três pérolas soltas do colar debulhado de minha mãe, a velha carteira sem os poucos dólares e euros que a valorizavam. Restos. Restos sim, mas tão ricos em cernes.
Sentei-me para escrever sobre estas minudências e me perguntei dos próximos dias de quarentena. Que vou fazer? Quais os novos acontecimentos emocionais? Que sairá deste meu convívio pessoal? Poderia desdobrar perguntas mil, mas amedrontado me questionei sobre o limite desta condição de confinamento. Será que estou com medo? Medo do quê?