Os três só querem votar se for pra vencer: a democracia é uma inocência inútil

 

Na era pré-PT, a esquerda só conseguia se reunir em paz nas masmorras da ditadura. Assim foi no Estado Novo de Vargas e também no regime autoritário militar e civil, que emergiu do golpe que derrubou o vice no poder, Jango Goulart. E terminou na guerra suja das ruas depois da vigência do Ato 5, que ensanguentou o “ao vencedor as batatas” de Machado de Assis ao transformá-lo no cruento “às favas com os escrúpulos” do coronel Passarinho e da tortura sob o torcedor Médici.

Metralhada nas greves e em manifestações de rua, torturada nos porões e abatida a baionetas, a esquerda militante foi se esconder no exterior e ali descobriu que não teria condições de impor as próprias ideias socialistas à mão armada. Foi então que resolveu recolher o rabo entre as pernas e conquistar o poder pelo voto na velha, boa e execrada democracia burguesa. Fundado em 1980, o Partido dos Trabalhadores (PT) reuniu três correntes principais, mas logo seguiu a tradição da divisão inevitável, fragmentada em várias tendências. De início, esses três troncos eram constituídos pelos líderes do chamado sindicalismo autêntico dos dirigentes sem compromissos com o Partido Comunista Brasileiro (os comunas), pelas comunidades eclesiais de base da Igreja Católica (os “padres de passeata e freiras de minissaia” de Nélson Rodrigues) e pelos ex-guerreiros das milícias comunistas, pretendentes a “heróis do povo brasileiro”. Os primeiros desprezavam o voto por sua inutilidade prática. Os teólogos da libertação nunca viram nele a redenção messiânica da humanidade. E os antigos exilados sempre o consideraram uma excrescência burguesa.

O partido que os reuniu viveu em permanente dúvida sobre o consórcio entre a única maneira de chegar ao poder e a sedução bárbara de encurtar o caminho para os cofres públicos evitando as encruzilhadas da volúvel vontade popular. A liderança do ex-sindicalista metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva, conquistada à base de esperteza, malandragem e carisma, encurtou a peregrinação pela via eleitoral e permitiu o uso de uma tática revolucionária dos grupos de esquerda, infiltrando-se pelas brechas à mão entre as instituições do frágil Estado Democrático de Direito. Mas amor pelo voto nunca nenhum petista de responsa teve na vida. Por que agora, em plena travessia aziaga da crise que eles próprios produziram, descobririam nele algum condão que não fosse simplesmente perpetuar-se no comando da desordem pública empunhando as gazuas do poder?

Nas priscas eras da saga do assalto à República, o líder máximo fez das cabines para votar palanques finais de suas disputas eleitorais. Nas perdidas numa estadual e em três presidenciais, o metalúrgico usou sua têmpera mineral para visar a vitória fatídica. E nunca faltou a um compromisso cívico, envergando o macacão de grevista, a camiseta rubra do militante ou a gravata vistosa do mandarim republicano. Agora chegou a vez de chutar a urna.

Em 1988 ensaiou a primeira rebeldia, negando-se a assinar a Constituição que deu vida à democracia de verdade, depois da longa noite autoritária e da transição para o direito do voto universal. Terminou pondo o jamegão no documento dito cidadão por seu autor maior, Ulysses Guimarães, por lhe faltar coragem para enfrentar o venerável ancião. A vingança contra a autoridade moral do velho timoneiro tardou, mas chegou.

Em 30 de outubro de 2016, o fazedor de postes faltou ao encontro com a urna por não ter em quem votar. Compareceu no primeiro turno para sufragar o companheiro Tarcísio Secoli, que não chegou ao segundo. E ele teria de escolher entre Orlando Morando, do PSDB, e Alex Manente, do PPS. Um tucano e um comunista golpistas. Podia votar nulo. Podia votar em branco. Mas Lula preferiu faltar. Não votou em ninguém. Mais tarde, o instituto que leva seu nome explicou que, aos 71 anos, ele não tinha a obrigação de votar. Mas tendo Lula ânsia de vencer sempre, dane-se o eleitor que não escolheu seu companheiro. Dane-se o Estado Democrático de Direito, que desta vez não o atendeu. Dane-se o País, que já se tinha se danado mesmo nos 13 anos, 4 meses e 12 dias sob a égide de seus governos e de sua afilhada e sucessora, Dilma Rousseff.

Por falar na ex-presidente, ela, mais uma vez, seguiu os passos do padrinho, antecessor e patrono, fugindo da urna como o diabo sempre escapuliu da cruz. Madame vota em Porto Alegre, onde Raul Pont, do PT, foi expelido da disputa final do segundo turno pelo eleitorado. E o mesmo caminho tomou outra possível candidata da ex, Luciana Genro, do PSOL. Sobraram o surpreendente Marchezan Júnior, do PSDB, e Sebastião Melo, do PMDB, ambos dos principais partidos “golpistas”. Ela foi a Belo Horizonte visitar a mãe, com quem não se dá e que está doente. Não é fofa? Não se sabe, e nunca se saberá, se seu súbito afeto filial melhorou o estado de saúde da alquebrada genitora.

Lula e Dilma, na certa, não aprenderam que o exercício dos direitos políticos é feito em duas direções: votar e ser votado. Talvez achem que voto só serve para vencer. Não era o que ela argumentava, teimosamente, para tentar desqualificar o processo de impeachment, insistindo no respeito ao voto, que ela não exerceu no segundo turno? Mas a quem importa agora?

Outra personalidade importante que se recusou a votar no segundo turno foi a ex-unanimidade nacional Chico Buarque de Hollanda. Este viajou para Paris, em vez de comparecer à sua seção de votação na Zona Sul do Rio de Janeiro para tentar reduzir a diferença entre seu candidato, Marcelo Freixo, do PSOL, e o favorito Marcello Crivella, do PRB. O que havia de tão importante a fazer na França? Terá o autor de Pedro Pedreiro sido convocado para aconselhar o xará François Hollande sobre como se comportar no conflito sírio? Não se sabe, nunca se vai saber. E é pouco provável que o filho de Sérgio Buarque algum dia justifique sua ausência para os eleitores que convenceu a votar em seu candidato, participando da campanha dele e até juntando sua venerada voz às de outros decantados reis e rainhas da MPB num jingle tocado no horário eleitoral obrigatório.

O voto de Lula, Dilma e Chico só é útil quando pode levar algum companheiro ao poder. Disputa democrática não é com eles, que a consideram uma inocência inútil. Mas mesmo que se disponham a abrir mão do direito de votar, dificilmente terão a humildade de reconhecer que chegou a hora de se aposentarem de seus sonhos de poder, renunciando ao direito de ser votado.

José Nêumanne é jornalista, poeta e escritor