Ao Mestre Sebe, um pouco da História que o Império tenta esconder
Desde 1969, caixas com fitas de vídeo e áudio, num total de 40 horas de gravações, ficaram guardadas num porão esperando em vão por algum interesse da indústria cultural americana
Acaba de sair um filme surpreendente: “Summer of soul (ou, quando a revolução não pôde ser televisionada)”, sobre o Harlem Cultural Festival. Ao ar livre, num parque ao norte de Nova York, lendas do soul, blues, gospel e latin jazz tocaram para mais de 50 mil pessoas em cada um de seis domingos no verão de 1969 para, em vez de entrar para a História da música negra, passar em branco pela mídia americana por mais de 50 anos.
“Uma rosa crescendo no cimento”, segundo quem assistiu à dignidade de uma Nina Simone se juntar a um B.B. King em transe. A catarse de Stevie Wonder tocando bateria e teclados, que, além de quem lá estava, ninguém ouviu, viu ou conhecia até o lançamento do documentário de Ahmir “Questlove” Thompson, músico, produtor, líder de banda hip-hop e conhecido por ser aquela figura enorme e sorridente que dirigiu a orquestra na última cerimônia do Oscar.
Questlove, do The Roots, dirigiu o documentário
Na tentativa de atrair as redes de televisão ou os estúdios de Hollywood, o produtor e dono das imagens, Hal Tulchin, apelidou o festival de Black Woodstock. Só depois de sua morte, em 2017, as imagens inéditas chegaram até Questlove, que, não acreditando no que via e ouvia, resolveu produzir o documentário.
O Harlem, ainda em luto depois do assassinato de Martin Luther King um ano antes, recebeu o festival como válvula de escape para as frustrações de uma comunidade em luta contra a discriminação e em busca da sua identidade. Segundo o ativista de direitos civis Al Sharpton, Jr., esse verão de 69 é “where the negro died and black was born”, onde o termo pejorativo “negro” morre, e nasce o orgulho “black”.
O verão de 1969 foi intenso. O homem pousou na Lua, Charles Mason e seus discípulos cometeram um dos crimes mais brutais da História dos Estados Unidos, e, a duas horas de distância do Harlem, um evento definiu uma geração: Woodstock. Tudo filmado, televisionado, documentado, escrito e discutido por uma mídia e uma indústria cultural que, com sua memória seletiva, esqueceram num porão um capítulo incrível da história da música americana.
Nina Simone, ao contrário de Jimmy Hendrix, prestigiou o Black Woodstock
As músicas de “Summer of soul” são alguns dos chicletes de ouvido de uma era. O grupo The 5th Dimension cantando a música mais tocada de 1969, “Aquarius — Let the sunshine in”, do musical “Hair”. Sly & The Family Stone, mais pop do que nunca, e seu “Everyday people”. A rainha do gospel, Mahalia Jackson, num vocal de arrepiar, e o grupo religioso Edwin Hawkins Singers, todos de verde-limão, cantando “Oh happy day”, me converteram instantaneamente.
Se “Summer of soul” é fundamental, a série de seis episódios “Lótus branco” é imperdível.
Personagens e atores incríveis numa história criada por um quase sádico Mike White, que nunca nos deixa saber se devemos rir, chorar, sentir vergonha ou raiva.
Um grupo de superprivilegiados de férias num luxuoso resort havaiano. A cada episódio, a tensão vai acumulando entre os funcionários do hotel, com seus sorrisos artificiais e condescendentes, e os hóspedes agindo como crianças mimadas, carentes da atenção especial que acham estar embutida no pacote. Comportam-se como se o único objetivo nesta vida fosse acumular dinheiro, vantagens, coisas, experiências, incapazes de perceber o mal que podem causar a quem está por baixo ou ao lado.
Panorâmica do Black Woodstock em 1969
Numa discussão sobre a opressão do povo nativo do Havaí, desde a derrubada do reino do Havaí e sua anexação pelos Estados Unidos, em 1898, um dos personagens dá para a filha adolescente sua versão sobre o que é privilégio: “Ninguém cede seus privilégios. Isso é um absurdo, vai contra a natureza humana. Todos estamos tentando ganhar o jogo da vida”. Para ele, estava tudo certo, os havaianos perderam, e agora que soprem as conchas para chamar para o jantar e dancem hula para os turistas.
Se a imagem da rosa crescendo no cimento define bem o Harlem Festival, o título dado pelos criadores de “Lótus branco” é de uma ironia cruel: no Havaí, uma flor de lótus nascendo da lama e da sombra para reinar linda e branca.