O agradecimento, singelo como um sentimento autêntico, apareceu em cartazes na passeata silenciosa que serpenteou pelas ruas de Washington, capital dos Estados Unidos, em homenagem a Martin Luther King, assassinado em 4 de abril de 1968, em Memphis, Tennessee. Reuniões, seminários e assembleias homenagearam o grande tribuno dos movimentos negros dos anos 1960.

Quando foi morto, aos 39 anos, King já era um veterano. Tornou-se figura pública aos 26 anos, quando se envolveu, em 1956, nos movimentos de solidariedade a Rosa Parks em Montgomery, no Alabama. Ela enfrentara a legislação discriminatória, recusando-se a levantar de um lugar reservado aos brancos no ônibus onde se encontrava. Encarcerada, a injustiça suscitou escândalo nacional. Os negros passaram a boicotar os transportes públicos.  E ganharam uma vitória histórica: a Suprema Corte dos EUA declarou ilegal a discriminação racial nos meios de transporte. King conheceu, então, os custos – altos – de sua opção: foi insultado, preso e teve sua casa atacada.

Martin preso

Martin Luther King foi perseguido pela polícia branca

As ameaças policiais, todavia, não o intimidaram. Nos anos seguintes, não haveria denúncia ou luta contra a discriminação racial nos Estados Unidos que não encontrasse nele conselho, apoio, estímulo, liderança.

Em 1960, por suas promessas, John Kennedy recebeu maciça votação das comunidades negras. Contudo, uma vez empossado, não as cumpriu. Os sucessivos enfrentamentos em torno da questão racial, em numerosas cidades do país, não o sensibilizavam. Entretanto, a brutal repressão às manifestações antirracistas em Birmingham, também no Alabama, em janeiro de 1963, filmadas e televisionadas, radicalizaram o movimento.  Na sequência, várias lideranças negras resolveram organizar um comício em Washington, capaz de alcançar repercussão nacional, globalizando o conjunto das lutas locais pela aprovação de uma legislação garantindo aos negros uma “segunda emancipação”.

Articularam-se cinco organizações: a Liga Nacional Urbana; a Associação Nacional pela Emancipação dos Negros; o Comitê de Coordenação dos Estudantes Não-Violentos; o Congresso pela Igualdade das Raças e a Conferência dos Líderes Cristãos do Sul. Todos estariam em Washington em 28 de agosto de 1963.

A ideia eletrizou a nação.  De todas as partes, reservavam-se aviões, trens e ônibus. We shall overcome (Haveremos de superar), cantava Joan Baez, no que se tornou um hino do antirracismo.

Joan Baez 1968

Joan Baez foi uma das que se apresentaram voluntariamente em 1963

No dia aprazado, reuniu-se a maior concentração política de todos os tempos no país. Encerrando-a, King pronunciou palavras que não foram mais esquecidas: “eu tenho um sonho: que meus filhos não sejam avaliados pela cor da pele, mas pelo seu caráter”.

Os movimentos negros registraram novas conquistas, evidenciadas na aprovação das Leis de Direitos Civis e de Direitos Políticos, em 1964 e 1965. É fato que a questão racial permaneceu viva – e permanece até os dias de hoje – como uma ferida não cicatrizada. Negros continuam sendo assassinados pelas polícias de vários estados norte-americanos. E persistem desigualdades raciais revoltantes. Não gratuitamente, surgiu, em 2013, o grito indignado: black lives matter (as vidas dos negros têm importância).

Nada, no entanto, obscurece os legados das lutas empreendidas nos anos 1960.

Em lugar de destaque, a autonomia de um movimento social em relação ao Estado e aos partidos políticos. Destacou-se, como talentoso organizador, Bayard Rustin, portador de um triplo pecado: era negro, objetor de consciência (recusara-se a ir para a II Guerra Mundial) e homossexual assumido.

2nd February 1964: Civil Rights activist Bayard Rustin, spokesman for the Citywide Committee for Integration, talks on the phone at the organization's headquarters at Silcam Presbyterian Church, Brooklyn, New York. (Photo by Patrick A. Burns/New York Times Co./Getty Images)

Ativista Bayard Rustin em fevereiro de 1964 enfrentou o preconceito sendo negro e gay assumido

Na integração de várias gerações de ativistas, distinguiu-se Philip Randolph, na luta desde meados dos anos 1930, incentivando os mais jovens surgidos em recentes embates.

O movimento era, sem dúvida, ancorado em aspectos identitários, porém, não se limitava a eles. Integrava questões sociais (por insistência de Randolph, a manifestação de Washington teria dois motes – jobs and freedom (empregos e liberdade). E quando foi assassinado, em Menphis, King prestava solidariedade a uma greve dos lixeiros locais, contra as terríveis condições de trabalho.  Além disso, desde 1966, ele passara a fazer contundentes discursos contra a guerra do Vietnã, contrariando os que estimavam a temática perigosa e sensível.

Martin comicio

Martin Luther King dirigiu manifestações que mobilizaram centenas de milhares de pessoas

Foi notável, por outro lado, a capacidade de ampliar alianças políticas e sociais – entre negros de distintas ideologias, e entre negros e brancos, mobilizando a opinião pública e atraindo artistas e lideranças políticas e religiosas.

Todas estas características articulavam-se em torno de uma concepção de conquistas progressivas de direitos. As mudanças seriam resultado da persuasão das consciências, no quadro de uma democracia a ser aperfeiçoada.

Por tudo isto, e por terem dedicado suas vidas à construção destes caminhos, cabe-nos, hoje, dizer: obrigado, Bayard Rustin;  obrigado, Philip Randolph, obrigado,  Dr. King.

*Professor de História Contemporânea da UFF

Email: daniel.aaraoreis@gmail.com

Abaixo, link para entrevista concedida por mim abordando temas polêmicos: 

 http://www.ihu.unisinos.br/578368-a-democracia-brasileira-esta-balancando-o-crime-organizado-e-uma-das-principais-ameacas-entrevista-especial-com-daniel-aarao-reis