É difícil medir o sentido histórico de uma geração. Mais árduo ainda quando a geração aludida é a nossa. O tempo corre e corrói certezas, e ante o presente, tudo parece fluido, líquido, fugaz. E assim muitos se perdem sem maiores preocupações sobre nossas origens cidadãs. O filósofo espanhol Miguel de Unamuno tem uma frase que arde nessa elaboração “somos mais pais de nosso futuro do que filhos de nosso passado”

          Verdade. Mal damos atenção ao pretérito e o vindouro, este sim, se nos afronta como desafio responsável e urgente. Mas como operar o presente, como preparar o porvir sem pelo menos alguns fios do passado tecido? Ah, como a História é requintada! Exigente, dá trabalho, requer tempo e pesquisas. Tantas vezes, frente à faina exaustiva, torna-se bem mais fácil sentirmo-nos bastardos de trajetórias. E nos deleitamos em esquecimentos, no máximo reinventando tradições cômodas, ainda que carentes de fundamentos. Saber trajetórias nos custaria muito e em seu encalço tornar-nos-íamos reféns de nexos trabalhosos.

A História, como ensinou Oscar Wilde, nos faz “arremedadores de Deus”, mas de um Deus falível, limitado porque tosco, e providente de um tempo apenas vazado do filtro da possibilidade tangível. Milton Nascimento já disse “nada será como antes” e assim, supomos o ocorrido e, no máximo, idealizamos alguma memória, sempre romantizada, mas que, por mais épica que seja, será falsificação do real irreproduzível. Volta e meia, porém, somos atacados por indagações que clamam respostas. E nem sempre nos é dado o benefício do “não sei”.

Familia

José Eugênio com a esposa Mireile, a mãe dona Ivone e a irmã Maria Silvia

          O exame do passado, às vezes se avulta e nos assalta como almas penadas. Insistente, sutil, a curiosidade escolhe alguns de nós e os faz suas vítimas: você há de me explicar. Na altura do nosso tempo, é inegável que se tenha formado uma confraria de técnicos, especialistas, profissionais do exame do ocorrido. Por certo, isto provocou uma casta de autores afinados em análises que combinam pesquisa documental com artefatos teóricos exigentes. E a História então se fez, desde o século XIX, disciplina acadêmica. Ilustre disciplina, diga-se. Assim, técnicos especialistas tornaram-se artífices da matéria. Numa escala de reputação, caberia a eles produzir o conhecimento apurado sobre caminhos e caminhantes do tempo ido. Isto é louvável, por claro. Mas há uma questão que incendeia o direito de perguntar “de quem é minha história?”. Isso tem feito com que ao longo dos séculos, alguns indivíduos ecoassem a mesma demanda e apresentassem a própria réplica.

Pensando a historiografia do Vale do Paraíba Paulista, em primeiro lugar cabe reclamar da atenção dada pelos profissionais da História acadêmica. Ainda que tenhamos um dos cursos de História mais antigos do interior brasileiro, quase nada tem sido atestado de competência. Aliás, dói admitir que o pouco existente deriva de pesquisadores “de fora”. Miserável, seria um adjetivo pertinente a os nossos estudos universitários. E lócus como Taubaté, por exemplo, com tão exuberante passado de implicação nacional, é mais escondido do que mostrado. Contraste vivo, porém, os historiadores locais, não profissionais, dão prova do significado da memória. Incontestável esta verificação. São os cronistas locais que agridem o esquecimento alienante dos estudos sobre como nos tornamos. E, felizmente, são muito bons. É verdade que houve esforços e nessa linha o nome de Maria Morgado de Abreu não pode ser deslembrado. O que nos redime – e com fulgor – é a existência de intelectuais da terra que permitem brotar lembranças capazes de permitir identidade. Paulo de Campos Azevedo, Emílio Amadei Bherings, Felix Guisard Filho, Geraldo de Oliveira, Paulo Florençano, Levy e Roberto Breterick, José Pedro Saturnino, Maria Cecília Guisard Audrá, Oswaldo Barbosa Guisard, Judite Mazella Moura, Cesídio Ambrogi, Gentil de Camargo, Pericles Noguera Santos, José Bernardo Ortiz Monteiro, Melo Jr., entre outros, constelaram um céu que seria muito mais apagado sem eles. Há uma nova geração que se coloca com luz no vasto escuro acadêmico. Com graça e picardia, cronistas, como José Diniz e Bety Oliveira Costa, desenham o passado recente. Em termos gerais e mais remotos, os irmãos Rubim, principalmente Pedro, fazem trabalho honroso, usando inclusive recursos eletrônicos autorizados. E pode-se dizer que a matriz desse proceder deriva de Gilberto Martins.

Ze Eugenio

Com mais de 70 anos, Zé Eugênio brilha na categoria master de natação

          “O sol da manhã” é o título do livro de estreia de José Eugênio Guisard Ferraz e a boa produção gráfica traduz um esforço retraçado na busca das origens da família Guisard. Dividido em três partes, o livro produzido pela Editora das Letras, além da introdução, conclusão, bibliografia e anexos, está distribuídos em três partes, referentes à: 1- origem francesa do clã; 2- à chegada e o percurso no Brasil, incluindo passagens pelo Rio de Janeiro e Minas Gerais, e, 3- finalmente, a fixação em Taubaté.

O percurso cronológico, marca a evolução parental e seus liames com o progresso do Brasil enquanto estado nacional. O acompanhamento das transformações modernizadoras do país, desde os Tempos Imperiais e durante a República, revela o projeto familiar modernizador carregado pela família Guisard. Por lógico, o impacto desse plano é subjacente ao desenvolvimento do Brasil como um todo. Muito além dos fatos constituídos para homenagear a família, detalhes pitorescos coexistem com a perspicácia de uma proposta elaborada em conexões poucas vezes explicadas nos contrastes coloniais. É nesse contexto que o concatenamento das investidas logra sentido. O claro/escuro permitido pelos Guisard permite ver o que de mais moderno existiu na superação do estatuto colonial. É sob essa ótica que a indústria desponta como alternativa ao mundo de fazendas, em particular do café. E a cidade de Taubaté se apresenta como cenário de uma experiência nacional. Onde os cafezais foram atestados de abundância, a indústria – no caso a “CTI” [Companhia Taubaté Industrial]se mostra solução pioneira.

Por certo, há muito que comentar num livro tão rico em sugestões, o que não pode passar batido, contudo, é a luta de uma família que se fez fait divers num ambiente tradicional. Chama atenção, sobremaneira, os pactos familiares singularizados, por exemplo, nos casamentos parentais e na manutenção dos nomes, repetidos por gerações. De igual monta, a luta pela integração social se transparece nas sutis formas de vivência social e práticas religiosas tidas como esdrúxulas ao meio conservador. A leitura dos textos assinados por José Eugênio Guisard Ferraz fermenta sugestões progressivas. Um dos méritos desta viagem ao passado – intercalada com imagens e fotos ilustrativas – é a abertura para se pensar em novos modelos de produção historiográficos, em particular movimentados pelos papeis das famílias que marcam a identidade da urbe taubateana. Nem vale esperar que a universidade cumpra seu papel. Assim, com emoção incontida, com apreço de uma amizade refeita no respeito a uma pesquisa cuidadosa e afetiva, deixo aberto o convite para que todos possam abraçar o representante de uma família vital para a história da região.

LANÇAMENTO: DIA 14 DE DEZEMBRO, ÀS 19h:30

LOCA: DONABELLA, CASA DE DELÍCIAS, Rua Félix Guisard, 229 lj 1