Peço licença para dizer que há método no caos que vivemos. E história também. Nem tudo – aliás, muito pouco – é o que parece na cena da política circense que se posta diariamente aos nossos olhos e que nos distrai perversamente. Rimos, indignamo-nos, ficamos chocados, atônitos até, mas é importante que se clarifique que este é mesmo o propósito que, afinal, nos paralisa. Ainda que figuras brutas, grotescas, bufas, ostentem ignorância como política, é preciso despertar nossa desconfiança e reconhecer intenções que vão para além da aparência medíocre.
O jogo é consequente e o que está em disputa é o nosso futuro democrático. Não, eles não são o que se mostram: idiotas ou equivocados. Há mais sutilezas do que se vê ou se ouve em numerosos e inacreditáveis pronunciamentos. As repetições, idas e vindas, aliás, fazem parte do script que objetiva confundir. As verdadeiras intenções estão ocultas por elipses históricas não reveladas, e elas carecem de reconhecimentos a fim de evitar efetivação de políticas ainda mais nefastas. E nem pensemos que o negacionismo é só científico. É muito mais que isso: é histórico. Convém, aliás, dizer que não é sem razão que as universidades são apontadas como antros de depravados, vagabundos, inúteis. Não é à toa que alguns campi são confundidos como campo de consumo de drogas, cenários de bacanais. Mesmo com cerimônia, convido a pensar que os dramáticos cortes de verbas destinados à educação e ao combate às cotas para minorias, juntamente com os progressivos processos de privatizações, não totalizam os ataques. Há mais. Sobretudo, assiste-se a uma progressão geométrica de ofensivas aos historiadores, sociólogos e cientistas sociais, às humanidades em geral. Explica-se…
Desde a chegada dos europeus em nosso solo, deu-se um curso longo e de intrincada inscrição no sistema colonial como um todo. A distribuição de terras destinadas à produção para atender o comércio externo nos impôs um destino servil duradouro e mantenedor de subalternidades. O custo de mais de 4 milhões de negros trazidos da África se compôs com massacres indígenas e com o não reconhecimento cidadão de levas populacionais marginalizadas. A decantada mestiçagem, tão cara aos românticos ideológicos, se multiplicou sem mudanças efetivas na estrutura fundiária, sem lugar social minimamente digno e sem perspectivas de integração.
A instalação da monarquia ocasionou um desvio na busca de soluções políticas que, afinal, tardaram para alçar alguma autonomia. Desde o século XIX, em particular dada a Guerra do Paraguai (1864 – 1870) a preponderância das Forças Armadas se fez presente e, até onde foi conveniente, sustentou o poder imperial brasileiro. A ruptura justificou um golpe comprometedor da lealdade constitucional, quebrada em 1889 com a Proclamação da República. Ainda que se reconheça beleza nos programas dos nossos republicanistas, a carência da participação popular permitiu governos militares que se viam como arquitetos do novo regime.
O protagonismo do Exército desde a Guerra do Paraguai – 1864/1870
Depois de dois presidentes saídos das fileiras do Exército, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, Prudente de Morais foi o primeiro civil a chegar ao posto, em 1894. Episódios sucessivos têm mostrado a interferência militar em nossa história, fato que sugere uma paternidade republicana mal resolvida e incômoda aos olhos de uma democracia que busca cara própria. Ao longo de tantos anos de tutela, aos olhos da corporação, parece natural o apego ao governo. Por certo, há momentos mais agudos nesse apego e a ditadura iniciada em 1964 e que teve termo em 1985 é prova da continuidade da mesma percepção.
Ainda que sem deixar liberado para o plano civil, o Exército Nacional, somado às demais Armas (Marinha e Aeronáutica), tem amadurecido e calibrado suas pretensões. É um processo complexo e com filigranas de difíceis contornos. Mas é inegável as divisões que, afinal, garantam um relativo reconhecimento do papel civil nacional. Não é, contudo, fácil deixar o processo correr solto. Dividida, as Forças Armadas enfrentam dilemas que são rebatidos por radicais ultraconservadores. É exatamente nessa fenda que os negacionismos atuam. A refutação pela ciência é mais exposta e se vê filtrada por insistentes narrativas. A louca retórica anticientífica é tornada cena pública a fim de mobilizar seguidores que em tudo veem ameaças comunistas ou depravação moral. O negacionismo histórico, porém, demanda conhecimento que convida a estudos e formulação de novos pactos cívicos. É lógico que há interesses internacionais fomentando tudo, mas sem esclarecimento histórico do papel das Forças Armadas em nossa história, pouco pode ser feito. O combate ao negacionismo histórico tem que se comprometer com pesquisas, estudos que, afinal, mostrem que o conceito de república brasileira civil tem que ser reprogramado. E repensado em diálogo com as Forças Armadas. Neste sentido, nada mais salutar do que um diálogo aberto, franco e claro e sem negações convenientes. A hora é esta. É?