As novas gerações ignoram a parceria de Raul Seixas com Paulo Coelho durante da ditadura 1964/1985
É estranho. Estanho demais, bem sei, mas gosto de personagens públicos problemáticos, de gente complicada, pessoas capazes de agitar a pasmaceira da regularidade. Meu olhar menino se alinha quando miro seres que se pontuam fora da curva. Por certo, esforço-me para separar o joio do trigo, e assim desprezo produtos fabricados para render likes, como “mulheres frutas”, celebridades instantâneas, políticos populistas, afff… Procuro originalidades autênticas e nelas entender os trejeitos de pessoas que se abalizam de maneira singular e continuada, até mesmo sem perceber. Admiro caras que incomodam pela distinção exótica, desafiadores da opinião pública, ou por presença quase escandalosa. Eu disse quase!… E coleciono, com certa ansiedade, manifestações idiossincráticas, exageradas, disparates que repontam ao longo da vida social. Seja para o bem ou para o mal, sinto brilhar a frase de Sartre garantindo que “da vida só valem os excessos”. Excessos bons, desses exuberantes, e até permito excesso meu, incluindo esta intrigante observação algo voyeur.
Casal de idosos bolsonaristas queima livros de Paulo Coelho
Em diferentes quadrantes, essas pessoas marcantes animam a vida, causam estranhezas e, sob olhar antropológico poderíamos dizer que em seus descomedimentos nos ajudam pensar os limites da normalidade convencional e os padrões médios. Na sociedade do espetáculo (Debord) aqueles que conseguem superar os 15 minutos de fama (Andy Warhol) provocam algo próximo de uma “indignação desafiadora”, e por isto motivam sensações incômodas. E seres bizarros não faltam no céu cultural brasileiro. Isso em todos os setores como no esporte (Neymar que o diga), na televisão (no momento Fabio Assunção empata com José Abreu), na literatura (o lugar de honra é de Nelson Rodrigues, mas tem o imortal Rubem Fonseca coladinho). Pois é, como não se trata propriamente de um concurso, resolvi dilatar a lista de possibilidades com um dos meus problemáticos favoritos: Paulo Coelho. E para começo de conversa destaco a frase que o tem distinguido nos jargões vulgares: “não li, não gostei”. Não é engraçado?! Engraçado ou lamentável, pois estamos falando de um dos autores mais vendidos em todo mundo, traduzido para 81 línguas, e presente em mais 150 países. Fenômeno, não só entre nós – ou melhor, apesar de antipatias nacionais gratuitas. Eu gosto muito, leio o que consigo sobre ele e mesmo o que dizem as más línguas. E, pasmem, aprecio o que escreve. Perdão, mas gosto mesmo… “Onze minutos” é um dos meus livros favoritos.
Gosto tanto que o saúdo como cidadão do mundo, escritor que versa sobre feitiçaria com a mesma facilidade de abordagens sobre islamismo, xamãnismo, ou outra religião, seita, credo. Há algo de metafísico, de teor transcendental pretenso, alguma coisa próxima de um “divino popularesco”, sinal que o caracteriza no ambiente pós-moderno. E como personagem, Paulo Coelho carrega uma história incrível e tortuosa: ex-usuário de drogas, subversivo torturado em 1974, esotérico, Paulo Coelho é um pouco de tudo o que foi numa versão midiática. Mas como esse ser esquisito se converteu no escritor pop, pergunta-se. Respostas demandam entender método coelhiano de produção artística que, aliás, foi fascinante desde o princípio. Ele mesmo conta “aprendi a escrever com Raul Seixas. Foi fazendo música para ele que eu descobri como ser conciso e direto, sem ser superficial”, e, dono de peculiar arrogância conclui “senão estaria até hoje escrevendo coisas dificílimas que ninguém entende”. Mas houve aperfeiçoamento entre o pretenso empresário de talentos que tentava lugar no capitalismo e o escritor – Coelho tentou ser produtor musical. Um dia, procurou o “maluco beleza” para uma entrevista e do encontro saiu parceiro de série musical. É verdade que o futuro os poria em campos opostos, mas não há como negar o começo. Diria que a universalização, foi o legado de Raulzito para Paulo Coelho que se globalizou, formulando uma literatura sem marcas de brasilidade. Sim, mais do que ninguém no planeta, ele soube assumir a dialética da modernidade universal. Talvez isto explique seu destaque que, óbvio, não poderia deixar de ser também polêmico.
Escritor Paulo Coelho faz parte da Academia Brasileira de Letras
Em termos cronológicos, o sucesso literário levou Coelho ser um gauche, mas um gauche estranho pois em 2002 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Entre as razões para tanto nariz torcido é o resultado surpreendente da publicação dos primeiros livros: Arquivos do inferno (1982), O manual prático do vampirismo (1985) até chegar n’O diário de um mago (1987). Da longa série de sucessos, sem dúvida, a reputação de Coelho se divide em antes e depois d’O Alquimista, publicado em 1990. Pois bem, é este personagem fascinante, este cara incrível, que teve seus livros queimados por seguidores do capitão Bolsonaro. E por quê? Porque, junto com personalidades como Leonardo Di Caprio, Sting, Madonna, Cher, entre muitos outros, inclusive uma plêiade de brasileiros, Coelho chama a atenção do mundo contra a política deste governo negacionista, em particular em relação ao meio ambiente.
Numa postagem nas redes sociais, um casal idoso, marido e mulher, em nome da defesa de Bolsonaro, dia 29 de setembro último, queimou as páginas arrancadas de um livro de Paulo Coelho. Dizendo tratar-se do décimo, o espetáculo macabro recriou no Brasil o ritual nazista de 10 de maio de 1933. Sim, na Alemanha de Hitler, fanáticos fizeram uma fogueira pública de escritos contra o regime, lá como cá, isso atesta o significado da intolerância e da incapacidade de convívio com a crítica, seja ela qual for. Em escala mínima, a memória desse feito abominável teve dimensões alarmantes e esclarecedoras e por isto merece atenção. De um lado, esta queima revela uma política de ataque à cultura, de agressão à opinião pública livre e independente, mas, de outro – e isto é terrível – permite iluminar a resistência aos desmandos que nos colocam como devastadores de florestas. E Paulo Coelho então se apresenta como baluarte de uma luta que, afinal, o traz de volta ao Brasil e aos temas brasileiros no universo. A propósito, e para terminar, vale considerar a conformidade rebelde do próprio Coelho que respondeu: pois é: primeiro compraram e depois puseram fogo.