Recebi numa das poucas redes sociais que frequento o poema de Mário Quintana “O velho do espelho”. Li com solenidade e coloquei um espelho em minha imaginação que vagabundeia por esse verão louco, hora molhado demais, hora tórrido demais. E “demais” é boa palavra para significar meu olhar sobre o pretérito visto do presente. O verso é aberto com um susto “por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse/ que me olha e é tão mais velho do que eu?”. Parei na primeira linha. Fôlego. Ar. Pensei no alvo certeiro do versejador que colocava em minha frente uma questão existencial.
Devo dizer que o dia ainda estava para nascer e aquela questão me paralisava. O verso era um diálogo entre pai e filho em que um se via no outro como continuidade e divergência. E, desdobrando, vinha a questão fatal ‘O que fizeste de mim?!/ Eu, Pai?! Tu é que me invadiste’”. Foi o bastante para transformar tudo em um ajuste de contas. Meu pai, meu passado; eu, meu presente…
Mestre Sebe espantou-se com a sua imagem (ou do pai?)
“Eu sou ainda aquele mesmo menino teimoso de sempre”… Costurei fatos da vida para justificar o recorte que me destilar o passado. De repente, me revi como garoto do interior de São Paulo, filho de árabes que tinham um claro e articulado projeto de vida, gente que saiu da pobreza aguda com o fito de não repetir a trajetória desgraçada nos filhos. Estava dada a partida. A loja no Largo do Mercado, a Casa Abraão, como cenário de trabalho indicava um caminho a ser seguido. É lógico que a educação escolar entrava no cardápio, mas como prato secundário. Primeiro e acima de tudo o trabalho. Dado o roteiro, me restava subvertê-lo.
Defini cedo meu caminho. Ser professor era a meta. Houve muita negociação, aprendi trocar a faina na loja com os deveres escolares. E me dei bem. Talvez aí esteja a matriz de nossos rostos: eu envelheci vendo meus pais lutando, dia e noite. O trabalho foi minha herança maior. Minha e de meus dois irmãos.
Parece que a rebeldia está no DNA: nenhum filho aderiu à academia
Vendo de hoje, “negociar” foi um verbo que conjuguei também na vida social e política. Sinto-me vexado quando retomo a vergonha que sentia ao ver meus pais falando árabe, e demorou a ter coragem de me orgulhar dos quitutes inigualáveis que minha mãe fazia. Mas me era fundamental temperar tudo. Em termos de cultura familiar, vivia duas vidas, uma devotada a mostra pública onde deveria ser igual a todos os não árabes; outra interna, pessoal, onde o “honrar pai e mãe” era mandamento da lei doméstica.
Ainda que questionador, rebelde mesmo, acho que não fui mal filho. E em termos políticos também divergi sem titubear. Com desmedida ternura guardo a lembrança dos “olhos fechados” de meu pai que me querendo, além de comerciante, advogado, fingia não saber que à noite, na surdina, eu cursava História. E qual não foi minha surpresa quando um dia achei recortes que ele colecionava com meus primeiros artigos históricos nos jornais locais. Sabia de tudo e quando chegou a cerimônia de formatura, orgulhoso me deu um anel. Mais exclamado fiquei quando depois, em vez de se referir a mim como “formado em Direito”, dizia que eu era professor. E olhava penetrante em meus olhos claros como o dele.
Cuidar da Casa Abraão fazia parte do destino traçado por seu pai
Casei-me fora dos planos familiares. Troquei a loja pela cátedra. Vê-lo emocionado em minha defesa de tese na USP, onde virei professor, me é das lembranças mais consoladoras. Morava fora do Brasil quando papai morreu e não cheguei a tempo para uma despedida adequada. A longa viagem furando espaços me fez em lágrimas agradecidas, as mesmas que retomo agora ao ler o poema seguinte:
“Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse/ Que me olha e é tão mais velho do que eu? Porém, seu rosto… é cada vez menos estranho…/ Meu Deus, Meu Deus…Parece meu velho pai – que já morreu!/ Como pude ficarmos assim?/ Nosso olhar – duro – interroga: ‘O que fizeste de mim?!’/ Eu, Pai?! Tu é que me invadiste/ Lentamente, ruga a ruga… Que importa? Eu sou, ainda aquele mesmo menino teimoso de sempre/ E os teus planos enfim lá se foram por terra/ Mas sei que vi, um dia – a longa, a inútil guerra! – Vi sorrir, nesses cansados olhos, um orgulho triste…”
Mário Quintana