Que o tempo passa não resta dúvida alguma. Nossos corpos denunciam: cabelos embranquecem, músculos ficam plácidos, a vista se debilita, o cansaço insiste, debilidades mil… Quando chegamos lá, num piscar de olhos, vemos que as coisas também mudam. Árvores envelhecem, animais domésticos morrem, modelos de carros tornam-se obsoletos, aparelhos elétricos queimam e perdem validade. O efeito dos álbuns fotográficos nos surpreende com flashes de registros hoje inimagináveis. Até o clima padece alterações e deixa avisos ameaçadores de novas mudanças. A moda dita regras que se opõem às antigas, e o consumismo reafirma as configurações dos novos tempos. Ser moderno é um pouco desmentir o passado disfarçando as marcas do pretérito.
Há duas formas de constatação do tempo, uma abrupta, outra mansa, ambas perversas. A primeira me faz lembrar o filme do italiano Federico Fellini “E la nave vá”, feito em 1983. A película narra a história do funeral de uma cantora de ópera que tem suas cinzas carregadas, em patético séquito, em um navio no qual os fiéis fãs as espalhariam no mar. A encomenda da falecida mandava que se buscasse o rumo de uma ilha, local de seu nascimento. A intenção do grupo muda de qualidade quando se descobre que o capitão teria acolhido clandestinamente um bando de refugiados e, em conseqüência, se daria um ataque de navio inimigo, situação que transformava os amigos da falecida em prisioneiros cúmplices. O tom surrealista do encaminhamento da história permite pensar que a vida é um delírio e que o inesperado exerce papel crucial na existência.
Queiramos ou não, a única certeza absoluta que nos resta é a morte. Mas antes dela envelhecemos. Sou daqueles que acham que fazer 60 anos é – para os que lograram chegar até essa idade – a mais importante celebração de qualquer vida. “Sessentar” implica fazer uma opção decisiva: que tipo de velho se quer ser? Serei um desses ranzinzas, chatos, irritadiços, ou pelo contrário, um velhinho simpático, gentil desses que tem vocação para Papai ou Mamãe Noel? Pois bem, pensando no fluir do tempo, dia destes, dei conta das transformações que se operam em surdina, na intimidade da chamada “realidade geracional”. Sim, é bom olhar os mais jovens e notar como as pequenas coisas, os detalhes de nossos cotidianos mudaram. É preciso certa perspicácia para medir a vida por alterações sutis implicadas nas formas de viver. Notei, por exemplo, que não se vê mais crianças com braços ou pernas quebradas, que os jovens não têm mais espinhas na cara, que as vidraças não são mais quebradas e não são vistas mais brigas de alunos nos portões das escolas, nem vendedores de balas caseiras, de quebra-queixo ou maria-mole. Estranho, não?! Não é que alguns objetos que faziam parte do erário infantil são desconhecidos hoje. E podemos começar pelas velhas enciclopédias que instruíam nossos saberes curiosos: Tesouro da Juventude, Barsa, Larousse…
Relata funeral de uma cantora de ópera que tem suas cinzas carregadas, em patético séquito
Fiquei estarrecido dia desses quando tive que explicar para um menino o que era um estilingue e bolinha de gude. Máquina de escrever exerce poder de maravilhar esta geração que já nasceu no reino dos eletrônicos. Nem se fala mais de coisas como “cair a ficha”, “virar o disco” ou “tirar retrato”. Entendi melhor quando em conversa com um jovem eu exaltei o tamanho de um bolo de aniversário dizendo que “era tamanho família” e minha surpresa se explicava pela presença no mesmo evento de pais separados, mas com seus novos pares, sendo inclusive que o pai estava junto com seu novo marido. Então, “tamanho família” não fazia mesmo sentido, nem “pegar o bonde”.
Dando corda (ai meu Deus, “dando corda”, imagine) a essas reminiscências lembrei-me de sambas antigos onde “Amélia era mulher de verdade, não tinha nenhuma vaidade” e as mulatas podiam ser “Bossa nova e cair no hully gally” e só dava ela, como queria João Robrto Kelly, e, para espanto meu, vi que Lamartine Babo seria censurado se apresentasse hoje “O seu cabelo não nega mulata”. Tudo muda e a aceleração do tempo torna o vertiginoso sutil. Nem notamos…
Fazendo pálido inventário dessas coisas, filosofei sobre a fatalidade das transformações. Elas podem ocorrer de duas formas: pela surpresa de um evento ocasional (outra vez Fellini reponta mostrando o impacto das interferências externas e inesperadas), ou pela mansidão natural dos desgastes. Somando tudo, entende-se melhor a insistência no uso contemporâneo do termo “memória”. A seletividade das lembranças é mágica e nos faz presentificar tudo, mas será que memória também não se inscreve no processo de mudanças totais? Sim, hoje é fácil constatar o avanço do chamado mal de Alzheimer e, então, resta esperar que as pequenas grandes lembranças da vida continuem a fazer de nosso momento existencial algo mais aceitável. Senão, senão é melhor esquecer tudo…