O que teria inspirado o visionário Monteiro Lobato quando criou o espiroqueta
Monteiro Lobato é conhecido por vários lances geniais, seja no campo da criação para crianças, nas tensões geradas em seus contos, nos embates públicos de cunho político e comportamental. Lobato, em qualquer dimensão, combina opostos: agrada e incomoda, inspira e provoca, é amado e odiado, tudo em iguais contrários, como um espelho que devolve o verso exatamente pelo reverso. Há, porém, no vasto escopo de suas criações originais uma que poderia merecer maior cuidado. Seja pela originalidade, pela astúcia do enredo, ou mesmo pela oportunidade de “presentificação” de sua obra. O chamado “Choque das raças”, depois rebatizado de “Presidente Negro”, formulou-se como um dos escritos mais perturbadores de todo patrimônio crítico literário nacional. Sem ser exatamente ficção científica, a trama se projeta no futuro, exatamente no ano de 2228. Na narrativa, foi aventada uma série de dilemas do momento em que foi escrito, em 1926, e que se estendem até hoje.
Lembrando que ao conceber tal livro o autor estava de partida para os Estados Unidos, onde exerceria o cargo de adido comercial junto a representação brasileira. Lobato então articulou uma sequência de fragmentos publicados em forma de folhetim no jornal “A manhã” do Rio de Janeiro. Conta o enredo que um jovem rapaz, Airton Lobo, caiu nas graças de importante cientista que inventara um aparelho capaz de antever acontecimentos, o tal “porviroscópio”. No caso, constatava-se o triunfo de um candidato negro, oponente de dois concorrentes, uma senhora e um velho ultraconservador, isso na 88a eleição norte-americana. Entre os temas abordados, de maneira profética Lobato elencava: o fim dos jornais impressos, substituídos por ondas magnéticas que se materializariam em telas; os conflitos de raças em disputa de poder e os sérios embates entre os Estados Unidos e a China.
Uma das previsões que Lobato viu no porviroscópio
Pensando na tal geringonça que afinal se torna motivo causal do argumento, imaginei a história deste nosso momento, contado décadas depois como História. Por lógico, o ambiente da Covid 19 daria o tom, e nesse devaneio supunha uma professora de escola infantil narrando para seus alunos a fábula do que vivemos hoje. Era uma vez…
Era uma vez, no passado longínquo um período nervoso do mundo. Pensando obsessivamente no progresso e no interesse individual, a coletividade planetária perdera a noção da solidariedade e, no lugar, o egoísmo dominava as relações provocando um distanciamento dramático entre classes sociais e indivíduos. Havia determinados aspectos que, contudo, atravessavam os comportamentos de todos, dividindo de forma ainda mais radical as pessoas: questões de gênero, a cor da pele, diferenças religiosas, orientações sexuais, tudo enfim servia para fracionar unidades que se encolhiam em causas conflitantes, a cada dia mais particularizadas. Nesse ambiente beligerante, imagine, inventaram até um artifício chamado “lugar de fala”, onde cada categoria se precisava em detalhes ridículos: mulher, negra, analfabeta, velha, nordestina…
A crítica proposta pela professora visava discutir o resultado do que se convencionou chamar “progresso”, que se reduziria à posse e ao acúmulo de coisas. Aliás, a isso, deram o nome geral de “consumismo” e de maneira obsessiva as pessoas começaram a querer coisas sempre novas e modernas. A tal ponto isso se tornou grave que o verbo “descartar” ganhou domínio, e tudo que era usado logo ganhava o lixo como destino fatal. E o volume da ganância foi aumentando tanto que o meio ambiente foi se deteriorado ao máximo, as florestas devastadas, os rios poluídos, e o “progresso” passava a ser medido pela renovação indiscriminada de bens.
As cidades foram se enchendo, os supermercados e shoppings se multiplicaram e tudo foi virando mercadoria. Ter e usufruir bens supérfluos foi se transformando em razão do sucesso, e, sobre o interesse coletivo, o individualismo se constituiu meta. Imagine que a sensibilidade perdeu sentido e no lugar o medo favoreceu o uso de armas, grades nas casas, guardas pessoais. As crianças trocaram as ruas por jogos eletrônico, o povo deixou de cantar, de rir, de se confraternizar, e os abraços foram perdendo sentido. A humanidade foi ficando a cada dia mais dependente das máquinas…
Os teóricos logo deram nome ao sistema que chamaram de “capitalista” e nele criaram planos de desenvolvimento conhecido por “neoliberalismo”, onde o estado cederia as funções de atendimento às necessidades básicas. Tudo foi privatizado, inclusive o sistema de atendimento à saúde e à educação. Lucro é o que interessava e isto ficou nominado de “livre iniciativa” ou “empreendedorismo”. O esforço desses políticos era simples: transformar o estado em mera entidade articuladora de instituições e bens de interesse privado. A tal ponto isso aconteceu que se confundiu o governo com empresa, e as regras de mercado, principalmente as estatísticas, ganharam foros de metas. E, sem pensar no passado – aliás, a História, bem como tudo que diz respeito às humanidades – ia ficando muito imediato, simples, mecânico, raso.
Será que o porviroscópio nos apresenta um final feliz?
Colocado em prática, esse sistema foi gerando pobres numericamente cada vez mais pobres; ricos cada vez mais ricos, mas numericamente em ordem inversa. E sob esse plano não interessava corrigir distorções. É assim que se explica, por exemplo, o racismo que prescrevia a meritocracia e não uma política de cotas. O machismo seguia a mesma ordem, idem o sexismo e todas as diferenças. Tudo, é claro, em nome de um patriotismo infantil que não dava respiro aos ideais universalistas. O “progresso” seguia essa lógica até que um vírus chamado corona apareceu em 2019 e colocou em dúvida todos esses valores. Foi uma terrível pandemia que afetou o planeta e propôs uma revisão nos valores gerais. Houve muita dor, milhares de mortes e foi preciso muito sofrimento para que o mundo voltasse a reestabelecer valores simples como a solidariedade.
Qual a moral desta história, perguntava uma aluninha? E a professora olhando para os demais mostrava a presença de crianças de várias raças, com características diferenciadas, e concluía que o fim do racismo era prova da revisão de valores, fator responsável pela mudança do rumo das coisas. Vista por novo “porviroscópio”, o presente seria mostrado como um filtro capaz de purificação. E graças a Lobato foi possível imaginar um final feliz para tanta dor que afinal tem que ter sentido, mesmo que por meio de um ilusório “porviroscópio”.