Foi por mero acaso. Havia comprado o livro “quem perde ganha”, de autoria de Ana Maria Machado, para dar a uma neta que tinha então oito anos. Por algum motivo o presente ficou guardado, e em recente arrumação de minha estante pessoal encontrei o mimo. Cansado com a movimentação de quem tira e põe livros arranjados em nova ordem temática, parei e li o precioso texto como se voltasse à infância. Foi um bom delírio. Viagem em tempos distintos: infância e maturidade. Flanei…
Esse texto trata de uma questão filosófica profunda, vertida para o alcance infantil. Como manda o figurino, Ana Maria Machado cuidou do assunto de maneira pedagógica, leve e com humor delicado, quase poético. São três histórias combinadas: “Fiapo de trapo”, “A menina que vivia perdendo” e “O boto e a estrela”. Sob juízo crítico e literário, trata-se de um magnifico jogo de linguagem que coloca em dúvida o dilema da perda. Mais do que propor nexos que se esgotam em vitórias, os três casos projetam continuidades transformadoras. Tudo, porém, visto pelo ângulo saudável de quem perde. Opondo os vencedores aos menos afortunados, a autora sugere meditação sobre a falibilidade dos fatos e deixa entrever o efeito do tempo que, afinal, mostra que nem sempre a vitória determina permanências benéficas. Há algo de Lavoisier na proposta que consagra a máxima: tudo se transforma.
Por lógico, o texto se vale de exemplificações. São historietas que ilustram o sentido moral e, nesta linha, a segunda narrativa, sobre a menina Lena, é destacável. O relato remete a uma situação de crescimento biológico. Em plena fase de transformação do próprio corpo, a criança que caminha para a adolescência vai perdendo roupas e sapatos. Tudo se passa sob o zelo da mãe que contempla a ambiguidade da menina que, no compasso do crescimento inerente a vida, se vê forçada a perder. A lógica filosófica proposta pela autora me levou a recorrer a outro texto escrito por Grahan Greene, inglês católico e notável escritor polêmico (ele bradou contra a “menininha” Shirley Temple, personagem dos sonhos dos norte-americanos no cinema, durante a Segunda Guerra Mundial). Greene em “Quem perde ganha” se vale da mesma estratégia narrativa e também coloca o momento da vitória em questão dramática. Mais do que ganhar uma contenda qualquer, interessa ver o rearranjo da situação no futuro. Como quem dissesse, olha, a vitória não significa fim, ambos os textos nos animam pensar o futuro.
Filtrei, pessoalmente, ambos textos e fiz uma aproximação com o momento político que vivemos. Foi assim que resolvi dar um balanço nas ladainhas de perdas de minha vida. Tirando a ausência de entes amados, que por razões emocionais não constelam meu juízo racional, percebi que as histórias de derrotas não foram cabais. Sempre, sempre, tudo resultou em algo bom. Foi com esta bússola que decompus momentos áridos de meu convívio com adversidades. Decantados tais enredos, aprendi que, passado o choque do veredito, um abatimento me aproximava da raiva. Também me foi válido lembrar que ter uma dose pequena de raiva é condição ponte, passagem para outra fase. Nunca fui de me conformar com os dados apresentados por situações de perda. É verdade, pois, que algumas vezes, depois da raiva – e por causa dela – me vi nas cercanias da depressão, mas também não sou chegado a baixo astral. Superada esta segunda fase, um alerta de reconstrução se me apossa, e neste momento vivo a sabedoria imposta pelo verbo “aceitar”. E tudo se ilumina. É mais ou menos assim que me sinto agora. Vejo, em termos sociais e coletivos, um momento em que meu ardor democrático será arranhado. Preparo-me para perder. Dói-me muito achar que estou como aquela mãe que, ante um desfile militar, via apenas o filho com o passo certo, os demais todos marchando em outro ritmo.
A oportunidade dos dois textos com o mesmo nome “Quem perde ganha”, um escrito para crianças e outro para público adulto, me alenta de maneira jeitosa. Preparo-me para enfrentar a tempestade que se anuncia devastadora. Mas, muito mais do que isto, estou aberto a entender o que a história tem a dizer para meu empenho cidadão, e o que me significa perder o compasso do coletivo. Ganhei antes (me é bom não esquecer), e agora se perder, além de reconhecer as virtudes do passado recente, tenho que me preparar para renascer. Tomara que as sagradas lições eivadas de leituras tão prazerosas resultem válidas. Estou pronto para ser derrotado agora. Estou pronto, também, para ganhar no futuro. É a vida, dirão os mais sábios. É a vida, digo para mim mesmo.