E assim se passaram 60 anos. No rastro da História, seis décadas é um sopro, mas para quem vivenciou o episódio da instalação da ditadura cívico militar e seus dramáticos desdobramentos, tudo aquilo resultou num ameaçador ensaio de eternidade infernal. Por mais que se exercite a memória, por mais documentos disponíveis, por maior que seja a exposição de fatos irrefutáveis, falta largura para o entendimento daquele episódio fatal que em nosso caso durou 21 longos anos. É verdade que a ditadura brasileira se inscreve em um projeto alastrado América Latina afora, envolvendo países como Argentina, Peru, Bolívia, Paraguai, Uruguai, mas cada um com reações próprias.
Supondo tudo que nos aconteceu – e que ainda se projeta na sociedade brasileira – vale reeditar a frase de Susan Sontag, filósofa que se expressou dizendo que “as únicas respostas interessantes são aquelas que destroem as perguntas”, e nós, adiando de tempo em tempo, sequer formulamos pressupostos necessários para questões afeitas ao peso histórico da ditadura falseada em “revolução”. Pior, ainda vivenciamos um negacionismo, que repete as voltas de um parafuso autoritário e persistente. Tudo para encobrir fatos óbvios de uma disputa que compromete a plenitude da democracia.
Sontag: “as únicas respostas interessantes são aquelas que destroem as perguntas”
O bom da questão é que mesmo lentos vamos juntando elementos para orientar o rumo para uma sociedade com justiça e equiparidade de direitos para todos. “Todos”, contudo, nos é uma categoria difícil posto sermos uma sociedade complexa, composta por camadas que lutam tenazmente por autonomia. Chega a causar constrangimento a condição subalterna dos chamados povos originários, de descendentes das sucessivas ondas de escravizados e da supremacia branca composta por conjuntos de colonizadores e imigrantes brancos e iludidos por uma democracia racial.
Há cortes assinalados no recente decurso histórico brasileiro. Diria que numa perspectiva sociopolítica a Proclamação da República (1889) foi momento determinante, diverso da Independência (1822) que, como processo diplomático, precisou de acordos internacionais negociados para a efetivação de um regime estranho ao corpo político latino-americano que viu brotar repúblicas sucessivas. A República brasileira resultou de rupturas consequentes, de rearranjos do regime que passou a depender de lideranças militares. Sem a garantia de entendimento do papel dos militares em nossa trajetória moderna, é inviável sequer formular as tais perguntas necessárias para respostas que até hoje nos atormentam.
Cadenciada por interferências constantes, de quando em quando os militares se reassumem senhores de um sistema que tem demorado para se efetivar em sua condição civil e constitucional. José Murilo de Carvalho qualificou como “bestializados” a ausência da população no processo de mudança do regime. E como tem sido difícil contar com o povo nas decisões públicas. Como se fosse uma prática natural, um conservadorismo crônico se fez tradição e o olhar para traz nos permite pensar em manifestações que desde o advento republicano impôs soluções resolvidas pela tutela militar, a saber: Canudos (1893 – 1897), Contestado (1912 – 1916), Revolta da Vacina (1904), Chibata (1920), Tenentismo (1920), Revolta do Forte de Copacabana (1922), Intervenção contra oligárquica (1930), Estado Novo (1937). Esse rosário de interferências marca a vigilância atenta ao andamento da política durante a vigência republicana.
José Murilo de Carvalho, historiador
Por lógico, os militares não agiram sozinhos e, no vazio de participação civil continuada, até ganharam reputação política. No caso de 1964, segmentos da sociedade civil e boa parte do empresariado se posicionaram de maneira a emprestar ao golpe a sensação de legitimidade. E assim a instalação da ditadura passou por fases que permitiram uma grosseira maquiagem, obedecendo inclusive a arremedo de Constituição (1967).
O próprio tempo e o transcurso da história desmascararam o poder imposto pela força e sem vigor eleitoral direto. E a luta pela redemocratização se fez como uma das mais belas páginas de nossa História. Avesso disso, porém, a solução assumida implicou um estranho pacto de anistia, condição diversa dos feitos na Argentina e no Chile. Entre nós o “deixa disso” silenciou brados denunciadores de torturas, mortes e exílios. Pois bem, o tempo aconteceu e o juízo histórico faz perguntar das razões celebrativas da instalação daqueles horrores. Cabe o apagamento da data que serve de referência de uma luta que precisa ter realce? Será que não é exatamente isso que promove a tentativa de outros golpes? E mais uma vez vamos ficar quietos?
Se “Requiem” é a primeira palavra a ser dita em missas fúnebres, pensando a postura oficial de autoridades que deveriam promover a rememoração, cabe dirigir o ritual de pêsames eles. E se “Gloria in excelsis deo” é a abertura de quem sabe agradecer pela luta em favor da democracia, aos que não se calarem, vale complementar “et in terra pax hominibus bonae voluntatis”. Amém.