Foi um fim de tarde inesquecível. Reunidos para almoço, o casal anfitrião esmerou no cardápio, nos vinhos, nos complementos delicados. Tudo especialmente preparado para marcar um reencontro cultuado. Éramos cinco. E a conversa?!… Nossa, foram horas destilando prosa fina, bate-papo temperado com erudição e humor. De entrada, o primeiro petisco funcionou com as madalenas de Proust e sem parar, partimos em “busca do tempo perdido”. E os caminhos da memória se abriram como os de Swann. Tudo foi especial, mas tão especial que não conseguíamos pôr termo nos casos que, enfim, nos viajavam por estradas encantadas. Já no limite do exagero, eis que do nada um dos convivas olhou para mim e fulminou “você já se sentiu em êxtase por estar em algum lugar?” Estremeci. De supetão desfilei algumas situações, umas duas ou três, mas foram superficiais. Passado o derradeiro gole de café, despedimo-nos. Confesso que sai perturbado e na solitude do caminho de volta para casa ressuscitei situações vividas como se estivesse fora de mim. Convoquei o transcendental.
O conceito benjaminiano de “aura” sempre me fascinou. Reeditar o contato único e intransferível, desenho abstraído de uma emoção bordada na cambraia da memória, é algo desafiador, íntimo demais. Talvez por isto, frente a grandeza de algumas lembranças, a discrição convoque o silêncio recolhido no melhor de cada qual. Mas o amigo simpaticamente exigia que prestasse conta e remexesse os quase segredos. Ousei. E foi assim que me vi na contingência de revelar um espaço no qual, incontrolavelmente, me senti fora do corpo que habito, algo como se tivesse perdido o limite de minha essência física.
Antes de revelações, preciso prefaciar que sou daqueles turistas vulneráveis que se deixam embalar facilmente por esquinas, cantos, monumentos. Adoro exercitar o exótico que muitas vezes mora em cidades grandes, museus, anda por concorridas avenidas, mas, no mesmo impulso, acontece de me apaixonar por vilarejos bucólicos, cenas pastoris, palmeiras solitárias (eu disse que sou eclético?!). Isso, em vez de facilitar hierarquizações, dificulta-as, pois, o volume de flashes embaralha, confunde, derruba primazias. Insisti, porém.
Depois de perfilar mil cenários cheguei a um ambiente especialíssimo: Saint Paul de Vence, aldeia da Cote D’Azur, nos Alpes francesas. O cenário é um cromo: velhíssima cidadela fortificada onde do alto de um campanário se avista o azul mais profundo do Mediterrâneo. As ruelas estreias, autênticas, duvidam da passagem do tempo. E respira-se história nas quinas harmoniosas. Lá, o frescor da Idade Média faz a modernidade sentir-se menina e transitória e assim inaugura-se um andamento atemporal que nos eterniza.
Não é, pois, sem forte razão que no início do século XX alguns dos mais importantes intelectuais escolheram aquele local para expressar suas artes. E olhe que a lista é prestigiosa, vai de Chagall a Matisse, De Miró a Leger e Braque, mas principalmente a Picasso que morava ao lado, em Antibes. Não bastasse tantas referências, há um detalhe bruxo que organiza toda legenda sobre o lugar, o Hotel La Columbe d’Or.
Recanto escolhido por mestres inigualáveis – que usualmente pagavam suas despesas com obras de arte – não é errado pensar na significação da “pomba de ouro” transparentes em variados artefatos saídos das mãos daquela seletíssima confraria. Prova maior disso pode ser constatada na produção final de Picasso que revelou para o mundo a razão de nomear sua filha caçula “Paloma”. Mais do que evocar o local “onde foi mais feliz” e produziu seu “último quinhão de arte-vida”, ele atualizou a força imagética dos pombos que repontaram em toda sua obra. Lembremos que aos 9 anos, o primeiro desenho conhecido de Picasso foi uma pomba e, na outra ponta, produziu a incrível série “as pombas azuis” já nos últimos sopros de vida. E não é menos importante lembrar que em 1949, Picasso elaborou os famosos cartazes do Congresso Internacional do Partido Comunista, consagrando definitivamente “a pomba da paz”.
Mas, as pombas de Saint Paul de Vence inspiraram também outros artistas que as registraram de maneira a tornar aquele sítio uma espécie de pombal paradisíaco. A insistência na retomada do tema pode ser testada por outras obras significativas, todas de inigualável valor simbólico. Exemplos? O magnifico mural de Léger na entrada do restaurante estrelado e da delicada pomba de Braque. E que dizer das pombas de Chagall? E as de Matisse?
Confesso ter me amedrontado ao colocar em jogo o suposto “aurático” de Walter Benjamin, mas, resultado lindo, em vez de vulgarizar o encanto pelos voos dos pombos da memória, recriei outro momento sublime, “aurático” também, que me permite garantir a paz de amizades celebradas na essência da conversa que também pode ser uma obra de arte, pomba da paz, reprodução de Saint Paul de Vence.