Às quartas feira, quase sempre, reservo um tempo para me dedicar às crônicas que escrevo, há cerca de doze anos. É um compromisso moral, comigo mesmo, como se estivesse desenhando meu próprio perfil. (JC Bom Meihy)
Há poucos dias, retracei algo que depois surpreendeu até a mim mesmo, dizia: não são os livros que nos pertencem, mas pelo reverso, somos nós que pertencemos a eles. É bem possível que tenha ouvido isso antes, mas soou-me tão autêntico que legitimei a expressão. Sim, existe um certo fascínio, algo estranho transitando entre o vício e o fetiche pelos livros. Um sentimento fantasmagórico me prende às páginas imprensas, postas em capas, e adquiridas pela força da vontade de leitura. E como gosto de me perder em livrarias… É como se fosse colocado em ponto de escolhas que indicam caminho para todos os problemas. Dias há em que saio do trabalho e me reconforto buscando títulos que não procuro, mas que se me impõem com graça. Confesso que fiquei intrigado com aquela frase que saiu quase espontânea, como se não governasse minha vontade. E aceitei assim, com inquieta naturalidade, o que brotou do impulso de uma consideração. O instinto existe.
Ainda com o frescor dessa meditação, na intimidade dialógica com meus botões, tentava me distrair das charadas burocráticas inerentes ao meu ofício. Em termos de trabalho, tinha que tomar uma decisão drástica. Pensei muito, admitindo a intermitência da frase escrita sem querer (sem querer?). Envolto nessa problemática, com a decisão encaminhada, pareceu-me ético comunicar a um chefe querido, pessoa que muito acima de cargo carreia meu respeito e admiração. Imagine minha perturbação… Considere também que sou paciencioso, discreto e tento cuidar dos efeitos de minhas atitudes professorais. Pois é. Estava assim quando me dirigi à sala da pessoa a quem deveria apresentar meu veredito. O caminho, devo dizer, parecia estrada sem fim. De toda forma, cheguei e ao me anunciar ouço um lacônico: fulano de tal está viajando, só volta na semana que vem. Dois sentimentos atravessaram minha cabeça exaurida. Um, remetia à alívio, pois, afinal, poderia pensar um pouco mais, ou pelo menos domar eventual exaltação; outro, porém pressionava a conformação, sugerindo que independente do dever ético, eu deveria continuar a viagem e ir diretamente para as instâncias e apresentar a demissão. Ao sair frustrado do escritório, perfazendo o roteiro da volta, eis que encontro pessoa querida, com um sorriso espontâneo, sem nada saber, e diz algo próximo disso: mestre, tenho um presente para você. Com zelo medido, abre a mochila e tira um livro, dizendo “é para você, sempre quis lhe dar este presente”.
Continuei os afazeres, esperei o expediente acabar, e finalmente no retorno para a casa folheei o livro com uma capa amarela, bem acessa, que, em contraste também berrante dizia em letras negras “Paulo Leminski – Cruz e Souza, Bashô, Jesus, Trótski – Vida: 4 biografias”. Por lógico comecei a leitura imediatamente, ainda na condução que me levava de volta à minha casa. Já reparou nos rituais de início de leitura!? Eu tenho os meus tão bem instalados que os cumpri com a mesma mecânica de sempre: dei uma foleada geral, vi o tipo de diagramação, o sumário, li a orelha, a quarta capa e voltei ao autor… No caso, Leminski, não há como deixar a curiosidade amansada. Um poeta de vida intrigante, escrevendo sobre quatros ícones de improváveis combinações. Tudo em um livro dito de biografias. Pronto, estava aberto o céu. O céu e o inferno, pois gostaria de me abstrair da dura realidade profissional e me mudar sem tréguas para aquelas páginas abençoadas que trançavam poemas, reflexões líricas e gravuras. Tudo feito com requinte de alguém que soube de despedir da vida, ainda jovem, não sem antes homenagear seus personagens. Não consegui parar. As interrupções necessárias foram como tortura.
Como acabou a minha história? De forma simples: tive que adivinhar o denominador comum capaz de explicar a junção de Cruz e Souza, Bashô, Jesus e Trotski. Foi na busca de lógicas possíveis que Leminski amarrou poetas e visionários, porém, todos trágicos. Frente a ironia dos fatos e o desconcerto do presente, me veio à mente o imponderável, dito aliás, pelo poeta/biógrafo: acordei bemol/ tudo estava sustenido/ sol fazia/ só não fazia sentido.