Tochas erguidas contra o escuro da noite, os manifestantes gritavam: “Vocês não vão nos substituir, os judeus não vão nos substituir”. Enfileirados, organizados, com bastões, capacetes e escudos, ecoavam seus gritos de guerra: “Sangue e solo, solo e sangue”. Ao cruzar com um pequeno grupo de contra-manifestantes, passaram a agredi-los sob o olhar quase cúmplice da polícia que só interveio depois de muita pancadaria.
No dia seguinte, no centro de Charlottesville, talvez animado pela passividade da polícia, um carro, a mais de cem quilômetros por hora, avançou sobre uma manifestação anti-nazista, jogando para o alto quem encontrava pela frente. Ao volante, James Fields, 20 anos, militante da Vanguarda Americana, uma organização nazista. Matou uma jovem mulher, de 32 anos, Heather Heyer, e feriu cerca de vinte pessoas.
James Fiels, à esquerda com escudo preto
Na origem da ira da extrema-direita, um voto da câmara da cidade, de maioria negra, a favor da retirada de uma histórica estátua equestre, a do general Robert Lee, escravocrata e chefe militar dos estados confederados do Sul, derrotados na Guerra Civil americana. O conflito encerrou-se há quase cento e cinquenta anos, mas ainda suscita amor e ódio entre os habitantes do Sul.
Nomes de lugares públicos e localização de estátuas podem gerar, e têm gerado, diferentes políticas de memória em várias partes do mundo. Segundo as conjunturas, e o humor das gentes, a estatuária é conservada com anotações críticas, destruída a picaretas ou discretamente retirada. No caso em apreço, as organizações estadunidenses de extrema-direita resolveram protestar. Levaram o caso para a Justiça e partiram para o confronto nas ruas.
Autodenominando-se como “alt-rights”, ou direitas alternativas, segundo sugestão de um de seus líderes, Richard B. Spencer, elas são diversas. As mais tradicionais, como a Ku Klux Klan, ou KKK, remontam ao século XIX, tendo uma assustadora folha corrida. Entre 1877 e 1950, teria eliminado cerca de quatro mil afro-descendentes, enforcados ou linchados. Hoje se encontra em relativo declínio, mas o leque ampliou-se com outros grupos, como a já referida Vanguarda Americana; o Tea Party, fração do partido republicano; redes de televisão, como a Fox News; revistas, como a Weekly Standard; sites, como Breibart News e New Stormer, este de inclinação claramente nazista; forums na internet, como Reddit; lobbies armamentistas como a National Rifle Association. Toda esta gente tem em comum uma ideologia racista, o chamado “supremacismo” branco. Para eles, os brancos são uma raça superior e o que eles chamam “a cultura ocidental” estaria ameaçada de extinção pela “invasão” de habitantes de diferentes origens e cores. Trata-se de manter privilégios ancestrais e, no limite, constituir um Estado puramente branco, nem que para isso seja necessário efetuar uma “limpeza étnica”. David Lane, líder da organização supremacista A Ordem, cunhou um slogan dito das “14 palavras”, popular entre os extremistas de direita: “”Devemos garantir a existência de nosso povo e um futuro para as crianças brancas” .
Militantes da Ku Klux Klan e…
Justiçamento executados pela KKK na campanha por direito civis há 100 anos
Christopher Cantwell, líder e ativista nos recentes conflitos, ao mostrar a uma repórter da HBO as diferentes armas que usa normalmente, fuzis Kalachnikovs, pistolas automáticas e punhais, argumentou que, cada vez mais, evidencia-se uma aliança entre as esquerdas, as grandes corporações e o Estado. Para enfrentá-la, a extrema-direita precisa de líderes, por exemplo, um “Donald Trump”, porém, mais racista, que não seja capaz de entregar a filha em casamento a um judeu.
O fato é que todos apoiaram com fervor a eleição de Trump. Não por outra razão, o presidente dos EUA mostrou-se evasivo e ambíguo ao comentar o ato terrorista cometido na cidade sulista, atribuindo a violência e a existência de boas intenções a “ambos os lados”.
Estátua do General Lee que causou muitos conflitos
Não foi possível conter a torrente de protestos provenientes da sociedade e mesmo do partido republicano. Os Bushs, pai e filho, registraram, de forma inédita, seu incômodo. O senador Marco Rubio, notório direitista, reclamou que era preciso denunciar a extrema-direita. O ministro da Justiça, Jeff Sessions, não hesitou em classificar o covarde atropelamento de “atentado terrorista”. Segundo suas palavras: “a ação corresponde à definição de terrorismo interno, um ataque maléfico e inaceitável”, no que foi acompanhado pelo secretário do Conselho de Segurança, general McMaster e pela própria filha de Trump, que reclamou uma condenação firme do racismo, da supremacia branca e dos neonazistas.
Trump ficou isolado e, nos dias seguintes, de forma patética e gaguejante, voltou atrás. Mas seria um erro imaginar que a extrema-direita renunciará a seus métodos. Ela se manterá disposta, nas palavras do fanfarrão Cantwell, a “matar este lixo anti-americano de judeus comunistas e pretos criminosos”.
Uma ameaça à democracia a não ser subestimada.
Daniel Aarão Reis
Professor de História Contemporânea da UFF
Email: daniel.aaraoreis@gmail.com