Antes de mais nada, Bom Ano Novo! Que 2021 quebre a redondeza do 20+20 e permita que retomemos a normalidade; às favas o tal de “novo normal”. É cabível na rotina das saudações de viradas bendizer momentos redentores e por isto fiz uma ladainha: um viva para a ciência que se mostrou eficiente no avanço da vacina; abraços para os que se puseram na linha de frente do atendimento hospitalar, e não posso me esquecer dos garis, coveiros, motoristas de ambulância e equipes de recepção em postos de atendimento público. Todos esses fatores se relacionam com a presença do coronavírus, mas a pandemia explicaria tudo?

Para início de conversa formulemos um problema analítico: o vírus representou alguma novidade no andamento nacional? Ou foi ele causador e responsável pelo desastre que vivemos no presente? A centralidade do tema pandemia tem ofuscado sequências inflamadas desde 2018, mas não nos esqueçamos de um pretérito fatídico. Nada é espontâneo nesse compósito. É verdade que há um antes e um depois da covid19, mas não nos iludamos com recortes. O tônus discursivo já estava dado proposto segundo uma fórmula maquiavélica, sutil por diluída no dia a dia, e expressa em recursos retóricos que beiram o inacreditável. Sendo mais claro, desmistifico o caráter espontâneo do presidente, não acredito em sua verve vomitada ao acaso, e nem aceito justificar tudo pelo (mau) temperamento. Nada disso.

Analisando o perfil do presidente, não é difícil perceber uma articulação diabólica, engendrada no intestino de seu caráter indisfarçavelmente autoritário. E instruo meus argumentos retomando a carreira do capitão reformado, depois de sua exclusão do quadro do Exército Nacional. Desde que eleito vereador em 1988 no Rio – em seguida deputado federal pela primeira vez em 1990 com seis confirmações – soube se insinuar no chamado “baixo clero”. Por 27 anos, gradativamente, foi abrindo atalhos que lhe permitiram subir a rampa do Alvorada. Nada de errado nisso, pois todos têm direitos. O que empeçonha são os meios usados, como se tudo justificasse o fim claramente antidemocrático.

Estratagemas a parte, cabe definir o objetivo maléfico: a formulação de um discurso midiático antipovo, pronunciado em nome da ordem e do combate à corrupção. Aí, aliás, se escondem as razões do tóxico verborrágico que marca o repetido show presidencial: depreciar a visão do povo e fazê-lo algoz de si mesmo. O exagero, o alarde, a falta de pudor, o palavreado chulo, fermentado de erros, matizam seus chiliques teatrais.

Recuemos para 2008 quando se deu um dos atos fundadores do que teríamos hoje como marca do abate da autoestima popular. Naquele então, frente ao indígena Jacinaldo Barbosa que lhe jogou um copo de água durante discussão sobre demarcação de terras, o magistrado cunhou uma frase demolidora da reputação do povo indígena, aos berros afirmou “você devia ir (sic) comer capim ali fora para manter suas origens”. Daí em diante, dos indígenas aos negros, todo tipo de rebaixamento da brasilidade popular foi exercitado. Frente aos descendentes de escravos, talvez a mais contundente afirmativa tenha sido pronunciada em 2017 “fui num quilombola (sic) em Eldorado Paulista e o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Acho que nem para procriadores servem mais”. Este arco contundente – que poderia ser recheado com menções às mulheres, gays, nordestinos, sem-terra e sem-teto – se fundamenta em pressupostos de um neoliberalismo elitista de vocacionado ao favorecimento de uma economia individualista. Nessa intenção, aliás diluidora da reputação marginalizada, reside o propósito da desqualificação dos grupos subalternizados.

Na altura do tempo presente, quando patinamos no lodo das políticas de saúde pública, pode-se pensar em juntar os pontos: não se trata de frases soltas, ditas aqui e ali. Nada. Tudo é pensado e se explica na intenção de permanência no poder. Ainda que chocado, valho-me de exemplo capaz de constelar tudo. Do alto de sua estrelar ojeriza à ciência, já na pandemia, a despeito das maiores autoridades especializadas, o capitão reformado se isenta de pressões sobre o uso de vacinas sugerindo que os efeitos colaterais de uma determinada podem ser fatais e nessa senda deixou evidente sua preocupação frente ao risco de os usuários virarem “jacaré”. E olha como ele é claro “se você virar super-homem, se nascer barba em alguma mulher aí, ou algum homem começar falar fino, eles (fabricantes) não têm nada a ver com isso. Engrossando a lista de negacionistas, desde logo o mandatário soltou pérolas surpreendentes agredindo interlocutores que questionavam o número de cadáveres. A guisa de pálido exemplo vale lembrar que não foi sutil ao dizer “eu não sou coveiro” (20/04). E tudo para ele virou “uma gripezinha” que aliás se alonga no “está passando”. E choremos 200 mil mortos…

“EU NÃO SOU COVEIRO”

É dispensável declinar as barbaridades presidenciais. Vale, contudo afiançar que ele canta em coro e se compõem com figuras como Damares Alves, Sérgio Camargo, Regina Duarte, Ricardo Salles, Ernesto Araújo, o vice-presidente Hamiltom Mourão (“não há racismo no Brasil”), Eduardo Pazuello… A lista é longa e para abreviar tudo deixo patente minha ansiedade para tomar a vacina. Com certeza, acato o risco de virar jacaré e, sinceramente, até prefiro virar bicho que suportar essa fauna desalmada. E por falar em animais de verdade, devo dizer que sou grato às emas dos jardins do palácio. As que bicaram o presidente em julho me representam.