Trabalhar com oralidade tem suas vantagens e riscos. As benesses correm por conta de surpresas que ganhamos quando se entende a fertilidade da palavra trocada com outros. Quanta beleza pode existir numa conversa amigável, solta, dessas que estão cada vez mais raras. Os riscos, por sua vez, procedem da redução da fala a mero ato informativo, mecânico, sem tempo de se alongar.

Mesmo na solitude, acabamos por estabelecer contatos com repertórios que nos acometem, com significados, muitas vezes inexplicados. Volta e meia canções rondam nossas cabeças e, sem perceber, deixamo-nos envolver por sons imprevistos. É ilusão, porém, supor que esses arroubos sejam inocentes, são resquícios de memória latente, que não se deixa morrer. É como se existisse dentro de nós um inquieto apelo libertário “que sofre, mas não morre”.

Ainda na sexta, 27, sem mais nem menos, me veio à cabeça uma canção que pensava esquecida. Foi assim: como um assalto que me vi repetindo a letra de Cartomante, de Ivan Lins, que na voz de Elis Regina declinava “nos dias de hoje é bom que se proteja/ Ofereça a face pra quem quer que seja/ Nos dias de hoje esteja tranquilo” é verdade que aqueles eram dias da brotada ditadura civil/militar, mas o significado embutido na canção se atualiza no refrão “Cai o rei de Espadas/ Cai o rei de Ouros/ Cai o rei de Paus/ Cai não fica nada”.

A associação com o noticiário recente é imediata. Depois do impedimento da Presidenta eleita, muitos supunham que a operação Lava Jato poderia morrer. Quis a justiça (dos homens e a divina) que as coisas continuassem e aí estão as providenciais promessas de novas quedas. Bastou enunciar esse mote para que fosse dada corda a outras lembranças de vínculos entre música e política.

Na virada dos anos de 1960, ante o recrudescimento da quartelada militar iniciada em 1964, ainda reinava a ilusão do transitório e se pensava no retorno dos militares ao quartel. E em coro, jovens, com Vandré, entoavam Pra não dizer que não falei de flores. Vale lembrar que a canção se abre exatamente com o vigor do canto “Caminhando e cantando e seguindo a canção”. Na prática, a canção não se realizou e, pelo contrário, foi um dos motivos do AI-5 que, no calorento dezembro de 1968, referendou o fechamento do Congresso promovendo devassas. O átomo da inquietação, contudo, se gestava e, frente ao macabro enredo que se seguiu, assistimos muitos jovens se darem à guerrilha. O terrorismo de estado se implantou e foi preciso a morte do jornalista Herzog para emblemar a reação. Foi longa noite de 21 anos que por fim permitiu raios de luz. Mas o preço foi alto.

Dia desses, pensando nisso outra canção me atacou, me surpreendi cantarolando uma letra que me acompanhou como professor; trata-se da Geração Coca-Cola, da banda Legião Urbana. Confesso que sempre que pensava em me alterar em sala de aula ouvia “Quando nascemos fomos programados/ A receber o que vocês nos empurraram/ Com os enlatados dos USA, de 9 às 6/ Desde pequenos nós comemos lixo comercial e industrial/ Mas agora chegou nossa vez/ Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês”. E como martelada ficava o refrão “Somos os filhos da revolução/ Somos burgueses sem religião/ Somos o futuro da nação/ Geração Coca-Cola”.

Talvez a herança mais triste dessa saga se expresse agora e se deixa transparecer na geração medíocre de políticos que temos. Logicamente, o processo que se seguiu ia cumprindo o script também dado por outra canção oportuna, digna de ser trilha sonora dos anos 1990, o Teatro dos Vampiros, igualmente da Legião Urbana. Em meio da letra ouve-se “Voltamos a viver como há dez anos atrás… E a cada hora que passa/ Envelhecemos dez semanas”. Incrível e doída memória. E assim caminhamos cantando e seguindo a canção.

Ainda que a impertinência das letras nos atormente, resta pensar que, apesar de tudo, há uma beleza inconformada na memória nacional. Que caiam os reis de paus, de espadas, de ouros e de paus.

 

por José Carlos Sebe Bom Meihy, meiconta63@hotmail.com