De passagem pela casa de meus pais no interior de São Paulo, na solidão de quem se deixa despregar do presente, me vi guiado pelas badaladas do velho sino da igreja matriz e assim, naquele dindon, fui me deixando perder distraído. Meu pensamento flanou à vontade, e foi longe e até me vi enlevado no garoto que fui. Diria que estava lá pelos 10 ou 11 anos de idade, sendo preparado para fazer a Primeira Comunhão na solene Catedral de São Francisco das Chagas de Taubaté.
Quanta gala então: meses com aulas de Catecismo exercitando abstrações sofisticadas, verdadeiros enigmas místicos do tipo: como entender um Deus uno e trino ao mesmo tempo; o dogma da virgindade de Maria “concebida sem pecado”; a hierarquia dos anjos e o inquietante Espírito Santo. A “transubstanciação” era um mistério insondável que, na estreiteza da adolescência mal começada, deveria aceitar sem qualquer questionamento. E teria que acatar o significado do batismo, da crisma, a infalibilidade do Papa… Além de tantos pressupostos etéreos, era preciso cumprir o barroco regramento ritualístico da Primeira Eucaristia. No mais: roupa nova, missal, vela, altares decorados com flores brancas, e as inefáveis fotos… Ah as fotos… Ah as fotos da Primeira Comunhão…
Exame de consciência era o que mais intimidava
Nessa trama complexa, um detalhe me pegava mais que outros: a confissão. Que dizer do fasto do confessionário, aquela capelinha envernizada, de madeira escura, estrategicamente situada na lateral da igreja. E como explicar o fatal genuflexório que de saída me submetia ao juízo de um padre que me perdoaria mediante minha autoacusação. Tudo intimidava na situação confessional, a começar pelo prévio e cuidadoso “exame de consciência”. Sim, não caberia improvisar, fazia-se necessário uma preparação, algo tipo ensaio, para depois pedir a remissão dos pecados e, contrito, jurar não mais cometê-los.
Pelo retrovisor da memória, fico pensando na retórica que tinha que cabia para amplificar o escopo de meus “pecadinhos”. Por mais pecante que fosse naqueles parcos anos somados, pouco tinha a escandalizar o grave ouvinte, mas, o aparato era tão grandioso que valia exagerar. Sim, eu alargava minhas faltinhas, pois haveria de ser coerente com o “Ato de contrição” que apregoa “eu, pecador, me confesso a Deus Todo-poderoso e a vós irmãos, que pequei muitas vezes por pensamentos, palavras, atos e omissões” e ainda, com toda dramaticidade, deveria bater no peito assumindo que as “terríveis mazelas”, eram atribuídas à “minha culpa, minha tão grande culpa”. Aliás, o ponto alto desse movimento soava funesto “e peço à Virgem Maria, anjos e santos e a vós meus irmãos, que rogueis por mim a Deus Nosso Senhor”.
Até os pecados foram atualizados
Ao longo dos anos, continuei me confessando, mas segredo que fui me tornando mais amigo de Deus e, na camaradagem que nos aproximava, fui mudando o tratamento confessional e assim, mais velhinho, corrompi os protocolos do catolicismo catiço. Com certeza, ter vivido os tumultuados anos do Concílio Vaticano II – convocado em 1959, efetivado durante o ano de 1962, atravessando os anos até 1965 – me foi fundamental. Com a cúpula da igreja eu também me atualizava e tudo foi acelerado mais tarde com as Conferências Episcopais Latino-americanas. Sim, participei da mudança da percepção da igreja que saía de seus muros e atuava mais moderna fora de seus portões e altares.
Olhando o passado, observando o processo de mudanças do mundo religioso, fico imaginando como me confessaria hoje em dia. Medito sobre isso, principalmente tendo em vista a proposta que considera os “novos pecados”. E foi o Papa Bento XVI que decretou que as novas faltas capitais são outras sete, a saber: 1- Pressa: uma pessoa apressada não tem tempo para Deus; 2 – Manipulação genética: isso seria “brincar de Deus”; 3 – Interferir no Meio Ambiente; 4 – Causar pobreza; 5 – Ser muito rico; 6 – Corromper pessoas e o sistema; 7- Causar injustiça social e promover a desigualdade.
Revendo esta lista, prezando o que era condenável no passado, sem negar qualquer evolução, sinceramente, acho que posso voltar a me confessar e desconsiderar os vetustos confessionários.