O verão de 1976 foi muito quente, em coerência perfeita com nosso sufocante clima político daquele então. Sem pudores, a ditadura militar não escondia suas garras já desgastadas, mas sempre expostas, exigindo dos contrários, “ações subversivas”. Por aqueles dias, o forjado milagre econômico se desmentia em abusivo aumento de taxas que, junto com o problema internacional do petróleo, anunciava o fracasso dos generais. Latente, os dirigentes prevendo a agonia do regime, sob o comando de Geisel, propunham uma “abertura lenta, gradual e segura”.
Fortalecida, a oposição desde 1974 se via animada com vitória de mais de 53% dos votos populares. Na aparente quietude do ideal democrático, a máscara autoritária se desafazia. Mas, isso era pouco para minhas aspirações juvenis. Muitos – hoje senhores feitos – guardam façanhas incríveis de dribles dados nas divididas daquele jogo macabro. Eu tenho uma história para contar e o faço com olhos amanhecidos do menino sonhador que fui um dia.
Minha fantasia era conhecer Sierra Maestra, cenário do epílogo da Revolução Cubana de 1959. A cultivada viagem equivalia ao avesso de utopias reprimidas e alçava a condição de redesenho libertário, peças soltas no espaço da repressão bandida. No ano anterior, em outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog fora assassinado nas dependências do DOI-Codi em São Paulo e em janeiro daquele 1976, Manuel Fiel Filho, operário, fora executado em semelhantes circunstâncias. Era demais para mim… Precisava de Cuba…
Curioso, li tudo que achei sobre Sierra Maestra. Vi filmes, coletei notícias, reuni relatos e romances sobre a área. Todas as dificuldades se me impunham e precisei inclusive desenvolver estratégia para esquadrinhar os mapas separados da biblioteca, como se fosse para dar aulas sobre geografia da América Latina Caribenha. Cronópio que sou, tratei de detalhar roteiros. Ouvi algumas pessoas e assim me inteirei do clima, da alimentação, das roupas adequadas. Tudo como a quem urgia fazer o sonho virar epopeia pessoal.
Fidel Castro, de óculos e boina, em plena guerra de guerrilha nos anos 1950
É preciso dizer que atravessávamos uma época de sequestros de aviões e, por mais estranho que pareça, ser levado a Cuba em nave arrestada seria o máximo. Não aconteceu assim, mas dei meu jeito. Trabalhava então para uma companhia de Turismo, Stela Barros que, por sua vez, tinha conexões com uma agência de Taubaté, ABC Turismo, da família Matera. Por aquele tempo, a Disney World já atraia a meninada e eu liderei algumas excursões. E guardava meus tostões até que finalmente capitalizado empreendi um périplo que me fazia feliz com o lustro de rapaz revolucionário.
A aventura era complicada, pois tive de voar até Miami, de lá para a Cidade do México e de lá, clandestino, cheguei a Santiago. Fiquei deslumbrado com a Cidade Velha, Centro Histórico, com o povo, música, comida… E com o ambiente político. Mas isto não era tudo. O planejado era ir a Sierra Maestra. Mas onde mesmo ficava tal lugar?
De Santiago, as “sagradas montanhas” sequer eram vistas. Foi assim que me joguei na problemática cubana pós-revolucionária.
Havia sim velhos automóveis que fariam a viagem para turistas, mas era muito caro. Segui sugestão de apoio na Universidade, mas os colegas não tinham recursos para empreender meu sonho. Correndo por vários caminhos, buscando socorro para finalizar o propósito da viagem, vi a semana se passar. Frustrações: fui a Cuba, venci todos os empecilhos possíveis, mas não cheguei ao destino ideado.
O que contei na volta? Para os círculos mais íntimos, exatamente para eles, não podia deixar de propalar as maravilhas do que não vi. Minha cabeça, sem titubeios, montou uma narrativa imaginária e a memória do que vi no papel, ouvi das pessoas e gravei de filmes e notícias foi o suficiente para me permitir destilar a memória de uma viagem que não fiz. Para os demais, o silêncio era conveniente e alternativa única.