A gramática ética de cada cultura dita seus temas corriqueiros, aqueles que devem reger conversas públicas, círculos de amigos, rodas sociais. É deselegante – ou de mau tom – falar de suicídios e, portanto, não é aconselhável “tocar nessas coisas”; isto não fica bem em sala de bate papo, é mórbido, e para tanto, na melhor das hipóteses, há lugares, idades, classes sociais, ou seja, “momentos certos”. Enfim, preside um pode-não-pode prá lá de ridículo: suicídio? credo!…
É grotesca, e inconsequente, tal abordagem. E, em todas as dimensões, o tema alça dramaticidade excludente. Judeus enterram seus suicidas em separado, os católicos não permitem missas, e islâmicos condenam e suspendem as lágrimas, budistas se alienam e espiritualistas evocam reencarnações malditas. E como se o suicido fosse pecado ou peste é repudiado como negação da beleza inescapável da vida. Assim, ante a imagem do corpo inerte, com certa estranheza, todos se recolhem em sepulcral silêncio e apagamento “daquela morte horrível”. Também vigora o disfarce e a falsificação, situações até compreensíveis na mesquinhes do contexto que assumimos, mas esta atitude é igualmente cínica e condenável. Tudo isso se justifica em favor de certo triunfo compulsório que obriga perceber a existência como bem supremo, presente divino, enlevo sagrado. Acordemos, precisamos falar dos suicídios e apontar alternativas de prevenção, quando elas são cabíveis. Aceitemos de saída o que o filósofo Albert Camus prezou como fundamental “existe apenas um único problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida significa responder à questão fundamental da filosofia”.
O suicídio como tem sido mostrado é o reverso extremo da plenitude e radical negação da natureza. É, culturalmente, pecado, ingratidão, avesso de tudo que se propaga como certo, bom, belo, gostoso. E não importam as duas versões já enunciadas há mais de um século: a morte autoprovocada é resultado de doença – a depressão – mas também pode ser considerada vontade plena de alguém que não mais quer viver, e pronto. Entre a depressão e a vontade soberana, contudo, há uma estrada que merece ser pavimentada com argumentos claros e explícitos. Separemos por agora o sentido digno e justo dos debates sobre a ortotanásia (direito de escolha do tipo de morte digna), e concentremo-nos nas alternativas derivadas da depressão.
Existe uma relação entre suicídio e depressão
Talvez pelo alarde dos números – no mundo, a cada quarenta segundos alguém se mata – ou pela dramaticidade singular de cada caso – principalmente dos que nos cercam – nota-se no momento, uma crescente tolerância frente à depressão. É bom que assim seja, pois ela é o prenúncio da autoimolação. Não há suicídio sem aviso e o estado melancólico é ameaça que precisamos aprender atinar. É notável ver que com alguma ousadia, graças ao carisma de um médico formador de opinião, Dráuzio Varela, tange-se pela mídia em escala, o tema da depressão, maior responsável pela autoimolação. E os dados são prá lá de alarmantes, referendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Somam-se para mais de 322 milhões as pessoas que, no mundo, padecem de depressão. E o montante só faz crescer, pois subiu, em dez anos, 18%. Os índices mundiais aferem que 4,4% da população mundial padecem dessa fatalidade e, nós brasileiros, temos os índices ainda mais dilatados, chegando a 5,8% (dados de 2017). Os mortos auto imolados que sofrem depressão atingem 97%, sendo que os demais cometem o suicídio por motivos derivados: drogas, álcool, indução a doenças fatais, auto bombardeamento (ou suicídios heroicos). Mas, no caso da depressão, reina sempre o silêncio sobre a doença já conhecida como “mal do século”, e que terá até 2030 abrangido mais pessoas do que qualquer outro problema de saúde. E tudo é culturalmente, interdito fato que sufoca razões explicativas e dissemina um mal-estar contagiante que faz (como disse uma amiga recentemente) “a gente sentir culpa e o coração pesado”. Mas continuamos quietinhos, no máximo trocando olhares e sugerindo sussurros que não devem gerar conversas francas. Recalques. Cada um de nós têm silenciado elencos de suicidas próximos. Convém assumir, deixar as etiquetas de lado, e por a boca no mundo. Temos filhos, amigos, vizinhos – e nós mesmos – em situação de possibilidade. A busca de consciência do caso está disposta e são acessíveis entidades como o Centro de Valorização da Vida (CVV) que presta, voluntariamente, apoio emocional de prevenção do suicídio. Isso sob total sigilo por telefone (188) e também por e-mail e chat, 24 horas todos os dias.
Além do alcance imediato, principalmente via telefone, convém ressaltar que o mais eficaz remédio para a cura destes suicídios é a conversa franca, aberta, sem solenidades, traduzidas na linguagem mais transparente possível. E temos que debater questões sensíveis, sem melindres, citar nomes, tentar entender casos, reconhecer o perigo que pode estar ao nosso lado. Uma das maneiras mais eficazes para tanto, como sugere Georges Minois no “História do Suicídio: a sociedade ocidental diante da morte voluntária” é apresentar-se com a questão: “já me candidatei a suicida” e continuar “sabe como?…” E detalhar…