Após a saída do Reino Unido da União Européia, o chamado Brexit, análises surgiram para explicar o porquê da decisão; questão vai muito além de explicações econômicas e nacionalistas.
“Não entendo muito de política, mas quero ver as chances da Inglaterra sem a Europa”. Entrevistado por Taisa Sganzerla, Daniel Slogget, trabalhador na construção civil, completou: “Os imigrantes querem nossos benefícios…mesmo que eles precisem, temos que dar prioridade a quem é daqui”.
“Aqui” é uma pequena vila costeira, Jaywick Sands, de 4 mil habitantes, “o lugar mais pobre da Inglaterra”, segundo os órgãos oficiais, numa avaliação feita em 2010 e reiterada cinco anos depois. Mais de 50% da população vive do seguro-desemprego, contra a média nacional de apenas 11%. Localizada perto de Clacton, de 30 mil habitantes, à beira do Canal da Mancha, a cerca de 130 km de Londres, vincula-se ao distrito de Tendring. Ali o “brexit”, ou seja, a saída da Inglaterra da Europa, alcançou 70% dos sufrágios.
Um gráfico elaborado pelo The Guardian confirma, em escala maior, estas tendências. É o caso de Boston, no Lincolnshire, cidade de 65 mil habitantes, maior taxa de homicídio do país, 33% dos jovens desempregados e 72% favoráveis ao “brexit”. Doncaster, com 158 mil habitantes, no Sul do Yorkshire, cravou resultados semelhantes: 60% pela saída. Sunderland (61%) e Middlesbrough (65%), antigas fortalezas da classe trabalhadora inglesa, votaram no mesmo sentido.
Já o distrito de Wandsworth, em Londres, um dos mais ricos do país, votou em peso (75%) pela permanência na Europa. Oxford, outro rico e letrado distrito sufragou a permanência com 73% dos votos.
A maior parte da grande mídia não hesitou em formular um diagnóstico simplificado: de um lado, as luzes da internacionalização, do progresso e da liberdade pela Europa; de outro, as trevas do nacionalismo, do fascismo e do atraso, contra. Sem dúvida, os fascistas aproveitaram-se do brexit, mas não parece razoável resumir uma situação tão complexa a um aspecto particular, por mais importante que seja.
Uma outra análise extraiu da votação um padrão – os de maior poder econômico querem ficar. Os de maiores problemas econômicos, desejam sair. Os mais qualificados e jovens votam pela Europa. Os sem qualificação e velhos querem sair. A rica e cosmopolita Londres quer ficar. Já os habitantes de Havering, nos subúrbios do leste, votam pela saída.
Não seria simplório avaliar os resultados eleitorais apenas pelo prisma econômico? As pessoas teriam votado apenas com o “estômago” ou com o “bolso”? Subjacente, não haveria algo mais complexo? Os que desejam sair argumentam que se perdeu uma “velha Inglaterra”, de hábitos conhecidos, que lhes conferiam identidade cultural. Antigos pubs, comércios locais, a solidariedade da vizinhança, a atmosfera de cidadania modesta e digna. Num plano maior, a ideia de que a soberania nacional está colocada em risco, ou já transferida para os “tecnocratas” de Bruxelas.
Em algumas décadas o país conheceu profundas mutações sociais. A referida jornalista as resume: nos anos 1960, quando os governos conservadores quiseram ingressar na então Comunidade Econômica Europeia, cerca de metade da população economicamente ativa do Reino Unido era formada por operários, os “blue collars”, colarinhos azuis, em contraste com os “white collars”, os colarinhos brancos – empregados da administração. Na época, 70% não tinham qualificações formais; 40% eram sindicalizados e quase um terço vivia em moradias sociais. Esta gente não viram com bons olhos a integração às instituições europeias. Talvez sentissem, por “instinto de classe”, que o processo era conduzido por outros interesses. Que um estranho progresso estava quebrando suas organizações e degradando as condições de vida e de trabalho. Que a “internacionalização” era do Capital e não do Trabalho. Votaram, pressionaram e fizeram o possível para que o “seu” partido, o Trabalhista, fosse expressão política destas demandas.
Lutaram e perderam.
Trinta anos depois, nos anos 1990, apenas 30% eram operários e não mais do que 20% organizavam-se em sindicatos. As categorias tradicionais de mineiros e metalúrgicos foram economicamente trituradas pela modernização conservadora e politicamente destroçadas pela mão pesada do governo liberal e repressivo de Margareth Thatcher.
Restaram escombros sociais e econômicos, quase invisíveis, entrelaçados com uma riqueza deslumbrante, quase insultuosa. Gentes confinadas, sem perspectivas, olhando para o passado, a pouca distância dos que têm dinheiro e poder e confiam no futuro. Uma atmosfera de ressentimentos, amadurecendo racismo, caça às bruxas e explosões sociais.
À espreita, aventureiros de direita tentam montar nestes ressentimentos e frustrações para alcançar o poder. Fazem os imigrantes de bodes expiatórios e convocam cruzadas nacionalistas. A reinvenção de uma Europa Social, comprometida com o Trabalho, a Liberdade e a Solidariedade é a melhor alternativa construtiva a este mundo de sombras.
Daniel Aarão Reis
Professor de História Contemporânea da UFF
Email: daniel.aaraoreis@gmail.com