Mestre Sebe afirma que em dias de humor se diverte  com o exigente dever diário e que desenvolveu alguns truques facilitadores de diálogos com o espelho. Será?

Fazer a barba é um ritual pouco discutível. Ainda que haja quem faça mecanicamente e nem registre, há os que não gostam ou, melhor dizendo, para alguns chega a ser prática muitas vezes amaldiçoada. Como eu, não são poucos os homens que detratam o barbear diário comparando-o a exercícios aborrecidos, obrigação civilizatória questionável. Já ouvi comparações estapafúrdias dizendo, por exemplo, que o barbear cotidiano equivale à TPM masculina. Sabe-se, é verdade, que, à guisa de culto, muitos cuidam de valorizar de diferentes formas o conjunto da insistente pelugem facial. Com cavanhaques bem desenhados, barbichas caprichadas ou bigodes talhados segundo padrões variados, exóticos ou sugestivos, não faltam os que ostentam virtudes que atestariam masculinidade e distinção. Esses passam tempo cuidando do rosto como se fosse garantia de sucesso ou atestado de algum poder de sedução. São, contudo, o outro lado da moeda corrente.

Alguns exemplares da fauna “testosteronada”, insatisfeitos com o branqueamento causado pelo peso dos anos, tingem os pelos do rosto como se a barba colorida disfarçasse a idade ou ajudasse na harmonização. Tudo em nome de boa estampa, mas, para os adversários desse detalhe da vaidade masculina, para os que, como eu, que têm preguiça e cultivam dias dispensáveis do macabro ritual, cabe a pergunta: para quê, ou para quem nos sacrificamos tanto? Outro dia fui mais longe e inconformado me questionei se o eixo da Terra motivaria movimento diverso caso não cumpríssemos a prática convencional. E até lembrei-me de Lobato e supus uma outra “Reforma da Natureza”.

Sou dos que preferem ficar sem barba, sem bigode, sem cavanhaque. Outrora tentei todas essas formas e aquelas experiências serviram para garantir minha opção pela “cara limpa”. Devo dizer que sou careca e quando me miro nos pares também carentes de cabelos refaço meu dilema estético e reafirmo o ridículo do “teto destelhado versus cara barbuda”. De tal forma isso me desassossega que quando encontro um careca com barba imagino-o com a cabeça virada.

Em dias de humor melhor até me divirto um pouco com o exigente dever diário e assim desenvolvi alguns truques facilitadores de diálogos com o espelho. Com espuma farta, por exemplo, cubro a parte peluda que insiste em crescer e vou brincando, fazendo manobras arrojadas com o aparelho. Há algo de artístico nisso. Aliás, entendo Camus com seu Sísifo diário e tento disfarçar a tragédia com o divertimento. E, dia desse, até com solenidade intelectual me vi ressuscitando Bertrand Russel como o profundo e filosófico “Paradoxo do barbeiro”: pois afinal, se um único barbeiro de uma cidade barbeia todo mundo, quem barbearia o barbeiro? Ou ele seria o único barbudo, vítima da própria função? Profundo isso, não?

Sim, procuro transformar em arte esse ato de estrita intimidade pessoal. Tem dias que deixo cavanhaques de espuma, em outros permito costeletas atrevidas, há vezes que admito variações conhecidas como “de lenhador”, “espartana”, “viking” e, imagine, até me dei ao luxo de buscar no Google alguns modelitos (os interessados podem ir ao https://www.gillette.com.br/pt-br/dicas-para-barbear/estilos-de-barba/quinze-principais-estilos-de-barba). Sabe, é engraçado desenhar ilusões provisórias e brincar com a própria cara na base do “como ficaria”. No comum das vezes, me recrio com bigodes estapafúrdios e assim saúdo Chaplin, Capitão Gancho, Clark Gable, Salvador Dali. Jamais Hitler. Jamais. Durante essa farra reservada, os sagrados minutos que gasto em frente ao espelho me permitem olhar no fundo do que sou e garantir minha opção pela aparência discreta, algo mais próximo da Criatura do que do Criador segundo proposta de Michelangelo na Capela Sistina. Ah, quando me dou esse tipo de derivação, até peço licença a Rossini e “Fígaro cá, Figaro, lá” me imagino num palco atuando como o Barbeiro de Sevilha.

Quando suposto no feminino, pelos na face evocam pânicos e dimensionam pavores eloquentes. Sei de mulheres que se sacrificaram muito para se livrar do que é atraente no sexo oposto. Graças a essa ojeriza das mulheres, segmentos masculinos têm se beneficiado de avanços no tratamento de outros pelos. Salões e academias se especializam na eliminação dos referidos empecilhos que agora tem aberto portas para a clientela complementar. Laser, cera quente, parafina, tudo tem sido adaptado para os candidatos a bonitões de plantão. Pois é, a “homarada” está fugindo da aparência viril e adere a visuais clean, e haja pelo para tirar. Devo dizer, contudo, que há um lugar onde nem mesmo os mais radicais homens devem suportar pelos… nos ouvidos. De resto, pelo por pelo, louvo os que preferem ficar pelados na cara e peludos no resto do corpo. Lembro-me, aliás, de Dercy Gonçalves pontificando que “homem já nasce enfeitado”.