– sobre o filme Aquarius.
Nunca gostei de ler os livros que todos estão lendo. Também evito prestar atenção demasiada em detalhes da moda, seja em termos de gosto musical, comidas ou roupas. Talvez, essa minha idiossincrasia se explique pela vulnerabilidade que facilmente me acomete. Sim, sou influenciável e para me proteger busco isolamentos, silêncios e demais artifícios defensivos. É verdade que sempre germina em meu inconsciente a vontade de matar a curiosidade imediata e entrar na onda, mas me contenho e até posso garantir que, com o tempo, desenvolvi técnicas especiais. Esse jeito, aliás, já ganhou estratégias de resistência, e por vezes me vejo obrigado a pagar caro por ficar “de fora” das últimas novidades. Não satisfaço sanhas de imediato, mas arquivo compromissos na memória, esperando o tempo passar. Até acredito que aprendi a ver virtudes nesse comportamento. Outra artimanha que acalento é perceber com certa antecedência os eventos que se incendiarão no gosto público, e quando isso se anuncia, trato de me adiantar, prevenindo-me das tais avalanches de informações e olhares definidores do gosto alheio. Também devo revelar que às vezes isto é difícil, pois alguns acontecimentos ganham velocidade incontrolável e se formulam desafiadores, com sugestivas sutilezas. Foi o que aconteceu com o filme “Aquarius”.
Gosto imenso de cinema. Ver filmes me acalma, facilita a interrupção de rotinas extenuantes e me ajuda fertilizar novas ideias. A primeira notícia que vi do filme do pernambucano Kleber Mendonça Filho foi no noticiário sobre o último Festival de Cinema de Cannes, na França. Na ocasião o elenco mostrava para o mundo o posicionamento contra o golpe branco que acabou por afastar a presidenta Dilma. Dois faróis se acenderam então: um voltado ao filme propriamente dito, e, outro ao comprometimento político da equipe artística. Ambos interessavam. E muito. Foi assim que propus uma indagação impertinente: um aspecto tem a ver com o outro?
Escolhi a primeira sessão de um cinema pouco frequentado e fui como um menino que foge da escola para ver o filme novo. Deu certo, a sala estava praticamente vazia e, munido de pipoca e guaraná, me entreguei para a história. As primeiras cenas enterneceram e alertaram, ao mesmo tempo: uma festa familiar remota e cenas de íntimo afeto erótico. O surgimento de Sônia Braga, passadas décadas da reunião inicial, indicava o caminho de uma vida que foi difícil. Não só pela beleza madura da musa dos anos de 1970, 80, 90 e de todos os seguintes a 2000, mas também pela interpretação perfeita. Diferente de grande parte das demais atrizes brasileiras, Sônia Braga não precisa ser estridente e agitada em cena. Simplesmente ela é, e isto basta. Aliás, com o nome Clara – intencional e metafórico – o desenrolar do enredo mostrava alguém que, pelo contrário da agitação moderna, se assume na sobriedade de uma solidão domada e reflexiva.
No caso, temos a história de uma moradora de antigo edifício, na Praia de Boa Viagem, chamado Aquarius, resistindo à especulação imobiliária. A história é singular em si, com trama bem amarrada e narrativa dividida em três blocos instruídos por flashbacks. Mas não é isto que qualifica o filme como excepcional. A música, por exemplo, é tratada como personagem da narrativa, faz parte integrante e essencial do enredo. Com o simpático apartamento, de frete para o mar, tendo as paredes recobertas por livros e discos, ouve-se de Taiguara a Queens. Assim, a música funciona como espécie de trilha sonora explicativa do sentido do tempo narrativo que não envelhece o gosto pela vida. E a história se completa emendando detalhes: o aniversário da empregada, as relações parentais, idas à praia e visita lugares com amigas.
Se tivesse que determinar um aspecto matriz do filme, diria sem pestanejar que o fato de Clara ter passado por uma cirurgia de câncer de mama é o grande nó da trama. Tendo extraído um dos signos mais importantes da representação da feminilidade, o seio, a ela não cabia perder mais nada. E a casa é a mostra mais evidente do apego à vida e sua história. O filme é fora do comum em todos os sentidos, inclusive em cenas que machucam a moral de falsos defensores dos chamados bons costumes. Isso, diga-valeu, para que conservadores críticos apoiassem o fato de elevar a censura para 18 anos. Mas, não bastasse, Marcus Petrucelli, por rádio, tv e imprensa escrita, detrata a obra, propondo, boicote ao filme, alegando que seria uma manifestação da “esquerda cinematográfica”. Em diálogo com moralistas, ultraconservadores, o crítico do site e-pipoca tratou de dar continuidade às suas sanhas que, felizmente, são contrastadas com a afluência pública que lota os cinemas. Afora tais situações devo expressar meu apreço pelo cinema autoral brasileiro, que no caso, só pela atuação de Sônia Braga, valeria ter sido escolhido como o filme nacional que representaria o Brasil na corrida pelo Oscar. Pensando nessas coisas, medindo o limite crítico nacional, requentado nesses tempos de política sombria, vale saudar Sônia Braga como diva capaz de iluminar noites escurecidas pela “nossa” política.
Por José Carlos Sebe Bom Meihy