Romeu e Julieta, o clássico literário de Shakespeare, séculos depois adaptado a uma ópera por Charles Gounod
A vida anda tão agitada, tudo muito corrido e sem sentido objetivo. Por certo, a exaustiva ressaca da pandemia se junta à pressão eleitoral, e tudo progride de maneira a nos deixar fragmentados, exaustos. O ambiente que nos cerca compromete a solidariedade e nessa toada limita o cuidado com o próximo e até conosco. O consumismo crescente nos impele a devoração de mercadorias, e assim vamos debilitando o alcance de empatias, a cada dia mais submissas ao mundo material e à cultura do descartável. Como consequência da materialização capitalista, nos reclusamos e no máximo exercitamos o convívio com nossos pequenos círculos, aliás, a cada dia mais reduzidos. Esse formidável fenômeno, contudo, é paradoxal, pois em tantas ocasiões é exatamente no isolamento que os grandes dramas operam. E nos estarrecem.
Em termos de memória social, não deixa de ser estranho como selecionamos alguns temas em detrimento de outros avivados. A violência doméstica, a valorização das mulheres, o combate ao racismo e à pedofilia, são alguns prezados que ganham foros jurídicos merecidos: vivas. O reverso, porém, corre por conta do silenciamento de outros tantos ângulos importantes.
Entre os assuntos apagados, sem dúvida, a questão do suicídio é das mais expressivas. Atravessamos o mês de setembro que, no calendário atento à saúde pública, é dedicado à prevenção do suicídio. O chamado “setembro amarelo” elenca apelos dirigidos a quantos se dispõem enfrentar o debate aberto a esse tópico doído. Todos somos capazes de identificar tentativas bem ou malsucedidas, próximas ou longínquas, mas nos calamos na intimidade de casos que deveriam ser examinados com delicadeza e crítica. Efeito maldito dessa elipse traiçoeira é o assalto que nos acomete a cada vez que o problema se expressa sorrateiro e fatal. Passado o instante de choque, sem responder às questões centrais, vamos em frente como se a dor fosse capitalizada por entornos culpados. Credo!
Santos Dumont pôs fim à própria vida
Dia desses fui surpreendido com uma pergunta angustiante: com quem você conversa sobre mortes autoprovocadas? Pensei… Pensei e depois de algum tempo conclui que apesar de considerar um assunto fundamental, imprescindível mesmo, apenas o reconheço quando instigado por algum caso imediato ou publicamente trágico. Isto, confesso, me perturbou muito, pois acompanhei, como professor de jovens, inúmeras situações que, contudo, são enterradas com os corpos que atingem finalidades. E por que será? Quais os móveis que constrangem o tema? Incômodos? Medos? Como falar sobre o assunto? Existem estratégias discursivas capazes de facilitar diálogos?
Aventar essas questões me fez recobrar a sombra promovida pelas artes. Romances, poemas, telas famosas estão aí, sugerindo arremetidas. Penso sobretudo em algumas óperas famosas que podem ser usadas como pretextos. Devo dizer que antes me detive em alguns suicídios de escritores e cientistas conhecidos como Hemingway, Alan Turing, Florbela Espanca, Virginia Woolf, esses, sem contar com casos próximos como Pedro Nava, Ana Cristina César, Santos Dumond, Walmor Chagas. Tais menções me levaram supor o uso da arte, em particular das óperas como pretexto para iniciar conversas.
Apesar do sucesso, Hemingway não suportou a depressão
Foi assim que retomei possibilidades que permitem abrir diálogos atentos a porquês individuais e coletivos. E nada melhor do que começar por Romeu e Julieta de Shakespeare vertido para ópera por Gounod. E tantas outras sucederam. Vejamos alguns casos: La Gioconda (Ponchielli), Abigaille e Otello (Verdi), Lakmé (Delibes), Hermann (Tchaikovski), Fedora (Giordano) Cio-Cio San e Liu (Puccini) e, Werther (Massenet), este, diga-se, o mais consequente caso que, aliás, chegou a servir de alerta a tantos jovens que imitaram o personagem desgraçado que teria servido de modelo para a onda de moços que buscaram o próprio fim como saída.
Sabe-se da dificuldade de começar a conversa, em particular em círculos em que a depressão se faz presente, mas é exatamente nesses meios que a questão precisa ganhar posto. É evidente que as escolas, igrejas, clubes poderiam também facilitar discussões, mas a tomada do tema em círculos íntimos, por certo, resulta melhor efeito. Sugeri óperas como estratégias, pois há uma intenção dupla no caso: esse gênero é pouco cultuado entre não iniciados, permitindo conhecimentos. Valho-me exatamente da estranheza desse gênero para propor uma abordagem que a um tempo sirva de motivo e reforce a busca da arte como forma de celebrar a vida que, afinal, é uma arte a ser preservada.