Presidente do STF solta prefeito condenado em segunda instância e não reclama de injúria de amigo contra a justiça.
Nasci e fui criado em casas de avós. Minha avó materna, dona Quinou, analfabeta, sabia e contava aos netos histórias de tirar o sono, de um gênero literário que ela chamava de trancoso. Passei noites em claro remoendo algumas, mas a insônia não fez esquecer. Agora, contudo, proponho-me a lhe contar uma tirada das notícias do dia.
Prefeitos de pequenas cidades do sertão nordestino, assolado pela seca e pelo coronelismo arraigado e manifestado em esmolas da Bolsa Família do lulopetismo populista, recebem polpudas verbas federais para gastar em saúde e educação. Quem não enriquece com as sobras e compra fazenda em Tocantins, bem longe do eleitorado, passa a levar vida confortável à beira-mar nas capitais estaduais, também a razoável distância dos fiscais. À cata desses aprendizes de políticos ladrões, a Polícia Federal (PF) instaurou no interior a Operação Andaime, investigação que desmascarou alguns malandros. Difícil é alojar alguns deles no destino adequado para gatunos: a cadeia. Acaba de ocorrer um caso bastante sintomático para mostrar como isso funciona. Peço vênia para contar-lho, pois se configura um exemplo acabado de nossos hábitos e costumes.
O Rio do Peixe, intermitente curso que expõe o leito nu de areia e pedras na estiagem e se orna de verde espelhado na água das chuvas de inverno, ao passar pela cidade onde nasci, Uiraúna, e por outra que serve de cenário para o conto de trancoso que me disponho a lhe contar: Marizópolis, assim batizada em homenagem a ilustre família de coronéis.
Em 2000, o prefeito de Marizópolis, José Vieira da Silva, comum em tudo – nome, sobrenomes e práticas heterodoxas na gestão –, foi apanhado na rede da PF e processado a pedido do Ministério Público Federal (MPF) sob a acusação de desviar cotas de Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação (FNDE) e de Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Ou seja, ficou com a parte do leão do dinheiro federal para construir escolas e postos de saúde ou hospitais para atender à carente população local. Doze anos depois (atenção para o prazo), ele, tendo direito a foro privilegiado por ser prefeito, foi condenado pelo Tribunal Regional de Recursos da 5ª Região (TRF5), em Recife. Beneficiado pela jabuticaba podre e azeda do direito de responder em liberdade até o último recurso na última instância, recorreu em liberdade à pena que lhe foi imposta.
Em fevereiro último, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu jogar essa jabuticaba fora e permitiu aos juízes mandarem prender réus condenados em segunda instância, depois de passarem pelo crivo de um colegiado. A decisão, sábia e histórica, deve-se à lógica elementar: um juiz isoladamente pode cometer mais injustiças do que um colegiado deles. A votação resultou em sete – Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux, Luís Roberto Barroso, Teori Zavascki e Edson Fachin – contra quatro – Celso de Mello, Marco Aurélio Mello, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber. Isso não se dá por raciocínio lógico, mas pela milenar aritmética de egípcios, babilônios e do grego Pitágoras. Desde priscas eras, sabe-se que um grupo de sete é maior do que outro de quatro. Para desespero dos advogados de ricaços, que, pela primeira vez na história, hoje se vêem obrigados a conversar com os clientes em parlatórios de estabelecimentos prisionais.
Mas parece que os vencidos não concordam com isso. Marco Aurélio Mello testou a convicção dos vencedores, mas preferiu desistir e adiar a agenda do caso que relatava. Só que Celso de Mello desafiou a tradição de se submeter à maioria do colegiado, muitas vezes citada em votações sobre o impeachment, e mandou soltar um milionário mineiro que matou o sócio numa boate, escondeu o cadáver num cômodo ao lado e deu uma festa, para a qual convidou familiares do morto. Aí, foi descoberto e preso.
Agora, as crianças famintas e os doentes esquálidos do sertão foram ameaçados pelo precedente do decano em decisão do presidente. O advogado do prefeito de Marizópolis, Telson Ferreira, recorreu da decisão do TRF5, mas Laurita Vaz, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a manteve. O pleito subiu ao STF e foi sorteado para relatá-lo Edson Fachin, que, pela lógica de Aristóteles, a manteria, de vez que faz parte do grupo dos 7, que rejeitou a jabuticaba azeda e podre. Qual o quê! Com Fachin em recesso e o presidente Lewandowski respondendo pelo plantão, este avocou o caso e mandou soltar o indigitado. O mínimo que se pode dizer é que as crianças e os doentes do sertão nada têm a lhe agradecer a leniência.
Sua Excelência alegou que o condenado, coitado, sofreu “constrangimento ilícito”, pois ficou solto por 16 anos após a denúncia. Não entendi o que tem que ver o umbu com as cascas. Mas, rondando e vagando, Lewandowski acrescentou que a decisão tomada em fevereiro pela Corte que ele próprio preside não firmou jurisprudência. Ah, sei! Não dá, contudo, para esconder o desserviço que sua bondade presta aos cidadãos do semiárido, que não têm direito a gestões honestas, instrução básica competente, assistência sanitária digna e atendimento decente a outras necessidades básicas. Apesar dos esforços honrados e meritórios da PF, do MPF, do TRF5, do STJ e dos sete colegas que ele desdenhou e tiveram as togas rasgadas e cuspidas justamente pelo chefão do colegiado.
Só fico a me perguntar cá com os botões de meu colete por que, no pleno exercício de sua suprema vaidade irracional, ornada por estantes abarrotadas de livros com citações pomposas, e insensível à vida real, ele se dedicou a soltar um prefeito dos ermos sertanejos. Mas esqueceu-se de reprovar publicamente o amigo que o nomeou, Luiz Inácio Lula da Silva, que enxovalha a honra da Justiça e do Estado Democrático do Brasil, nossa Pátria sem educação, com uma queixa esdrúxula à ONU de “abuso de poder” contra sua pessoa pelo juiz federal Sergio Moro. Afinal, até agora, este tem merecido a quase unanimidade de decisões favoráveis a suas sentenças em que condenou 71 réus. Enquanto o STF não condenou uma viv’alma, inclusive o presidente do Senado, Renan Calheiros, que chega ao 12º processo, um recorde para o Guiness. Quanta desfaçatez!
José Nêumanne é jornalista, poeta e escritor