Pode-se dizer que a decisão do ministro do Supremo Dias Toffoli que anulou as provas do acordo de leniência da Odebrecht tem origem em janeiro de 2019, quando Luiz Inácio Lula da Silva, preso em Curitiba, pediu autorização para ir a São Bernardo enterrar o irmão Vavá. Toffoli, a quem cabia decidir, passou longas horas em silêncio.
Só quando o caixão já era levado para a cova o ministro permitiu que o ex-presidente se encontrasse com os familiares num quartel próximo. Já era tarde. Lula desistiu da viagem e nunca perdoou Toffoli — a quem ele mesmo havia nomeado para o Supremo em 2009.
Toffoli impediu que Lula velasse seu irmão Vavá, vítima de câncer
Tempos depois, a condenação de Lula foi anulada pelo próprio Supremo, e o petista tornou-se favorito na corrida eleitoral de 2022. Desde então, Toffoli tenta se reaproximar em busca de perdão, mas Lula não quer conversa.
Toffoli, porém, é incansável. Em sua decisão, ele afirma que a prisão de Lula foi um dos “maiores erros judiciários da História do Brasil”, uma “armação”, “fruto de um projeto de poder de determinados agentes públicos”.
Não é um discurso novo, e talvez por isso o ministro tenha julgado necessário caprichar um pouco mais. Chamou a Lava-Jato de “PAU DE ARARA DO SÉCULO XXI”, assim mesmo, em maiúsculas, e disse que ela promoveu uma “verdadeira tortura psicológica” para obter “provas” contra inocentes.
Emílio Odebrecht, considerava Lula seu amigo
Quem assistiu aos vídeos da delação premiada de Emílio Odebrecht dificilmente conseguirá notar sinais de tortura no sorriso maroto com que o empreiteiro diz que os petistas estavam com “boca de crocodilo” ou ao contar que esteve com Lula no Palácio do Planalto para comunicar que a reforma do sítio de Atibaia seria entregue no prazo prometido.
Emílio também não parecia estar sofrendo ao dizer que ordenou uma “ajuda” de R$ 2,1 milhões para um filho de Lula montar seu campeonato de futebol americano, porque precisava que o ex-presidente ajudasse Marcelo Odebrecht a melhorar a relação com Dilma Rousseff. Nos registros agora anulados, aliás, Lula foi batizado de “amigo” por Marcelo. Toffoli era o “amigo do amigo de meu pai”.
Nada disso impede, obviamente, que se questionem as provas usadas no acordo da Odebrecht. Só que o argumento do ministro não para de pé. Toffoli diz que a Lava-Jato deveria ter feito um pedido de cooperação internacional para validar as provas — especialmente os softwares de propina com a contabilidade dos mais de R$ 10,6 bilhões distribuídos em 12 países, incluindo o Brasil.
Mas a explicação do próprio Ministério da Justiça incluída na decisão diz que, quando o acordo se dá entre “partes investigadas e autoridades competentes”, com entrega de provas, a cooperação não é necessária. Foi a Odebrecht quem enviou seus advogados à Suécia e à Suíça para recuperar os dados e entregar à Lava-Jato.
Não foi preciso quebrar nenhum sigilo ou acionar autoridade estrangeira. Uma vez no Brasil, um laudo da PF atestou que o material não tinha sido violado — mesmo tendo sido transportado de Curitiba para Brasília num saco de supermercado, como mostraram os diálogos captados na Vaza-Jato pelo hacker Walter Delgatti Neto.
As mensagens do hacker se espalham por toda a decisão de Toffoli. Em algumas de antes da delação, os procuradores comentam contatos que mantiveram com agentes do FBI e da embaixada dos Estados Unidos. Dizem até que era melhor continuar conversando com o FBI porque “o canal era mais direto” — o que, para muita gente, sugere ter havido uma espécie de “tráfico de informações” entre essas autoridades.
Foi para apurar essa suspeita que o antecessor de Toffoli no processo, Ricardo Lewandowski, determinou que a corregedoria do Ministério Público Federal fizesse uma investigação. A sindicância foi feita na gestão do insuspeito Augusto Aras e concluída em 2021, mas acabou arquivada.
O relatório final lista vários tratados internacionais de que o Brasil é signatário prevendo a possibilidade de contatos informais e sigilosos entre autoridades que investigam crimes transnacionais.
De acordo com a corregedoria, ilegal poderia ter sido o uso judicial de extratos bancários e outras provas obtidas no exterior sem a necessária cooperação jurídica — o que não correu. Mas o relatório foi colocado em sigilo e ignorado por Toffoli.
A Vaza-Jato não deixou dúvida de que os procuradores de Curitiba desprezaram ritos legais, cruzaram o balcão para combinar estratégias com o juiz Sergio Moro e demonstraram ter preferências pessoais e políticas que não condiziam com seu papel.
A revelação dos diálogos dizimou a credibilidade da Lava-Jato e foi fundamental para a revisão da condenação de Lula. Compreende-se, ainda, que os ventos da política tenham mudado e que Toffoli queira ser perdoado. Mas nada disso autoriza ignorar o que ocorreu no passado. A menos, é claro, que queiramos ver tudo começar de novo.