Lúcia Cursino Moura (1947/2018), esposa de Edmauro Pereira Santos, faleceu na segunda-feira, 30 de julho. Todos os amigos e parentes foram pegos de surpresas. Afinal, aquela bela senhora nunca havia apresentado qualquer problema até o mês passado. Só restou a dor e uma história a que começa a ser contada por dois personagens: Eduardo e José Carlos Sebe. As crônicas Uma história de amor e Carta a um jovem viúvo começam a resgatar 55 anos de paixão (na foto com Pedro, penúltimo neto)
Edmauro e Lúcia em um momento de descontração
Nos albores de 1963, alunos da segunda turma da Faculdade de Engenharia de Taubaté sentiram-se honrados quando foram recebidos na casa da renomada vereadora Judith Mazzela Moura, a primeira mulher a ocupar cadeira na Câmara Municipal da cidade. Tratava-se de uma comissão de quatro ou cinco representantes que levava à carismática política reivindicações do corpo estudantil. Dentre eles via-se, ainda com o topo da cabeça a revelar sua condição de calouro, Edmauro Pereira Santos.
Esse foi o cenário da primeira troca de olhares, o flerte entre Edmauro e Lúcia Cursino de Moura. Em um momento mágico, eclodiu a atração recíproca e incontrolável. Na mesma ocasião veio Edmauro a conhecer seu futuro sogro, o cativante Sr. Geraldo e os queridos cunhados Rute, Heleninha e Geraldinho.
Iniciaram o namoro, mãos entrelaçadas nas voltas pela praça, no clube e nos cinemas dando publicidade e afastando pretendentes inoportunos. A seu tempo, no ardor juvenil, a perplexidade do primeiro beijo. O amor se impondo, a necessidade sempre premente da proximidade do outro, os carinhos, corações aos pulos. Foram par oficial no fim do mesmo ano no baile das debutantes do TCC. Depois, nessa torrente de felicidade o tempo voou até o noivado e o casamento.
Uma das últimas fotos de toda a família com filhos e netos
Em 7 de março de 1970, no Santuário de Santa Terezinha subiram ao altar. Ela, como sempre, estava linda, agora toda de branco, sorridente e chique. Ele, alto, magro, bonitão, compenetrado, era um homem cônscio da responsabilidade que assumia com tanta esperança e prazer. Um belo casal. Lúcia era muito mais do que Edmauro sonhara para dividir a vida. Era de alma simples como ele, de boa família como ele, tinham os mesmos sonhos e ambições, pretendiam ter filhos e estabelecer família. Identificaram-se. Apaixonaram-se e juraram amor eterno. E foram felizes para sempre. Essa história, entretanto, não se encerra à moda dos contos de fada com o casamento dos personagens, escondendo do leitor todos os dias seguintes às bodas com eventuais dissabores que porventura empanassem o brilho sedutor da narrativa até então. O leitor, aqui, ficará na certeza de que Lúcia e Edmauro foram realmente felizes para sempre.
Quem viveu uma paixão intensa sabe que ela não se explica. Só invade e se impõe. Não precisa de motivo ou fundamento. Aconteceu assim. Mas algo havia a se sobressair no manto de virtudes que envolvia Lúcia a mais cativar o parceiro. Parceiro no amor e na existência e nesse caso tão único, até além da existência. Sua doçura. Sua profunda e discreta doçura.
Iniciaram a árdua luta pela sobrevivência e pela afirmação profissional. Lúcia no magistério e Edmauro na engenharia mecânica. Incentivaram-se reciprocamente e foram vencedores nos seus misteres.
Vieram, como era imperioso, os dois primeiros filhos. Alexandre, hoje com 47 anos, casado com a médica pediatra Simone, cirurgião dentista e professor universitário, pais das mocinhas Luiza e Bruna e Luiz Guilherme, juiz de Direito em Pindamonhangaba, agora com 45 anos, casado com a empresária Maris, pais de Lívia e Caio. Quando menos se esperava, alegrou-se a família com o advento de Luiz Ricardo, atualmente com 36 anos, casado com Juliana, pais de Pedro e Mateus, ambos conceituados administradores de empresa na Capital.
Nesse tema poderiam Lúcia e Edmauro resumir o sentido dessa realização emprestando alguns versos de Eurico Santos: “O tempo, que corrói a obra alheia, a nossa fez mais forte e apetecida e não nos tem faltado o sal da vida e o doce mel de toda uma colmeia” (Soneto, 9/1/1981).
Lúcia teve muitos amigos. Basta ver reação comovente dos inconsoláveis companheiros de grupos de whatsapp, o consolo a toda a família expresso das mais variadas formas, as lagrimas no último encontro.
Confraria reúne senhoras que enobrecem a tradição e a fraternidade da terra de Lobato
Foi sempre uma mulher bonita, elegante, esforçada e trabalhadora, digna, reta, cativante, bem informada, preparada. Doce. Encantadora.
Lúcia foi esposa perfeita para Edmauro. Em todas as esferas. Mãe e avó extremosa. Orgulhosa da prole. A sintonia entre o casal era surpreendente. Entendiam-se e às vezes até se desentendiam brevemente sem palavras. Viviam realmente, sem nenhum apelo à retórica, um para o outro. Dedicação completa e exclusiva. Desenvolveram ao longo dos anos juntos uma outra condição que raramente se vê nos casais. Cumplicidade. Eram aliados e mais que isso eram cúmplices. Saborearam uma vida sóbria, quase que rotineira e recatada. Sem grandes viagens, exposições ou aparições sociais glamorosas. Sem jamais temer o tédio que destrói alguns matrimônios.
Os que amam muito entendem essa conduta. O casal apaixonado dificilmente deixa o ninho. Quer–se tanto que precisa de espaço reservado. Quer sentir sem interferência o passar das horas. Sem passatempo que lhe roube o convívio. Admirável que tenham mantido a chama acesa o tempo todo. Pois sem esforço ou atropelos mantiveram-na acesa até o derradeiro instante. Aliás, essa chama nem a finitude humana apagará e esse é um dos milagres dedicados aos grandes amantes que venceram juntos todos os obstáculos da vida. Por cinquenta e cinco anos que passaram sem que tivessem percebido.
Lúcia e Edmauro realizaram o discurso amoroso na sua perenidade, dita improvável, e na sua perfeição contrariando, ou melhor, posando como exceção às considerações de Roland Barthes, no seu consagrado Fragmentos de um Discurso Amoroso. A propósito, é curioso que imortais da literatura mundial retratem o grande amor e a grande paixão negando-os de alguma maneira. Preferindo superestimar as barreiras para sua consumação. Aprisionando-os num espaço determinado de tempo. A história de amor a que ora se remete venceu os estrépitos da obra de Shakespeare porque Romeu e Julieta não conseguiram sobreviver aos combates impostos à paixão que nutriam. Fugiram da vida e não enfrentaram inimigos ainda mais poderosos dos que os derrotaram. Houvessem consumado o sonho de amor e haveriam de submeter-se aos percalços que uma longa vida em comum traria e aí sim, seriam postos à prova.
Lúcia e Edmauro na festa do ELO em 2011
Lúcia e Edmauro estão mais para os conceitos de alma gêmea e busca da própria metade, na forma vista em O Banquete, de Platão. Parecem um exemplo rematado da alegoria. A história é conhecida mas vale lembrar, só de passagem. Os seres humanos, na visão mitológica, viviam colados em duas metades, com quatro braços e quatro pernas e tinham poderes que fugiam à capacidade humana atual. Moviam-se com grande rapidez e se convenceram que podiam desafiar os deuses mas perderam o embate travado. Zeus, então, vingativo, com uma espada, cortou-os verticalmente, espalhando-os. Diz-se então que cada ser procura sua outra metade e se porventura realiza a rara façanha de encontrá-la faz-se completo outra vez e readquire a força que praticamente o assemelha aos deuses.
Ao contrário do que pode parecer e como costumeiramente se apregoa na própria cerimônia de casamento, não é certo que a morte separe os protagonistas de uma particular história de amor. O amor que foi jurado perante o sacerdote, no rigor da liturgia, não teve o alcance do amor jurado por Lúcia e Edmauro, um para o outro. Eles juraram amor sem fim, amor eterno, amor em todas as dimensões, amor invencível a transcender as meras formalidades dos homens.
O que avulta, o que importa é que Lúcia e Edmauro vivem no seu amor e será sempre assim.