Soube que o presidente melhorou. Melhorou?…
Tão lindo o amanhecer hoje! Fim de madrugada, sentei-me no terraço, café quente e forte, torrada com coalhada fresca, friozinho gostoso. O mar em minha frente foi se azulando claro e calmo. Ao me permitir evocar devaneios, supus dar folga à tal realidade, troçar a política corrente no país, reduzir a pó o elenco de personagens macabros que nos assombram. A magia da nascente induzia curtir o amanhecer carioca. Sutil e etéreo instante aquele. Recém acordado, aspirei a beleza pensando que, afinal, mesmo depois da luminosidade definida, alimentado por beleza, haveria de deglutir melhor os sapos nossos de cada dia.
Por mais inspirador que fosse o cenário, contudo, não me esquecia dos soluços presidenciais que, aliás, se intensificavam na medida em que o escuro se perdia. Soluço, sinistra trilha sonora. Tomando consciência da conversão da noite em claridade, não havia como escapar da fatalidade daquela glote presidencial. E o mandatário batia na memória com aquela presença desagradável, autoritária, exalando atitudes anticonstitucionais, machismos dimensionados em muitos atropelos verborrágicos. “Mas pra que tanto céu, pra que tanto mar, pra quê” me perguntava.
Presidente Bolsonaro insulta Barroso, ministro do STF: “Imbecil”
Flanando em restos de devaneios, pensei no soluço como metáfora, algo à Susan Sontag. E, perfilando fatos, entendia os solavancos expressos em lives, cercadinhos, robôs. Os solavancos soluçados me avassalavam mostrando, um depois do outro, o significado de ataques ao voto impresso; dizeres mordazes sobre o STF; ofensas proferidas contra o ministro Barroso (imbecil e idiota); ameaça de suspensão da eleição de 2022; impropérios dirigidos à CPI; agressões estúpidas contra repórteres mulheres; o lamentável show de motociclistas em contraste com a falta de sensibilidade para com familiares dos mortos da pandemia (“eu não sou coveiro”); o uso político de orientações religiosas; os ataque homofóbicos… Credo… Soluços e mais soluços.
Sabe, até o presente não havia notado que o soluço pudesse ser expressão política. A mera constatação disso fez sugerir uma teoria meio louca sobre o tema e assumi ares de doutor conjecturando explicações que justificariam, por exemplo, o palavreado chulo do mandatário, suas repetidas evocações escatológicas. Ia fundamentando minha hipótese até que cheguei na relação fisiológica do soluço com o intestino. Entendi, finalmente, o teor do “c*g**” publicamente pronunciado.
No vai vem de argumentos, imaginem, me veio à cabeça a conhecida receita familiar “soluço. Dê um susto bem grande que passa rapidinho”. Pensei no impeachment, juro. Logo, porém, supus que com o centrão pode não acontecer. Como a realidade fugida do escuro, o dia foi sugerindo outras evasivas e lembrei-me da recomendação da sabedoria popular: tomar água, levantar as duas mãos, mas como? Como, se não temos água sequer para apagar os incêndios florestais e se alguém levantar as mãos podemos ser baleados por milicianos munidos até os dentes. Mudei de sintonia e lembrei-me de sambinha muito antigo cantado por Ângela Maria “eu fiquei com soluço/ De um tutu que comi no jantar/ Já bebi água, já bebi chopp/ E o soluço não quer passar”. Uma coisa puxa a outra e notei tantos soluços na nossa MPB: Chico Buarque, Aldir Blanc, Taiguara. Devo dizer que de tantas canções optei por Dolores Duran que “na noite escura”, solitária, avisou: “solucei baixinho”… Mas esses eram outros soluços, culturais e a cultura… a cultura está com cortes dramáticos.
Dolores Duran “na noite escura”, solitária, avisou: “solucei baixinho”
O dia já havia se feito quando me ocorreu algo espetacular: e se inventassem uma vacina contra o soluço? Saudei a ciência e louvei o conhecimento que afinal se provou excelente propondo, rápido, antídoto tão competente e de efeito instantâneo. Sim, o conhecimento preside apesar dos ataques presidenciais à educação. E imaginei logo um prêmio especial para uma descoberta que poderia curar o presidente e, quem sabe, interromper a série de soluçadas políticas. Enfim, ia dando corda às saídas quando tive que me lembrar que o presidente é negacionista contumaz: ele seria o último a tomar a vacina. Rasgada a fantasia da esperança me resignei: não tem cura.
O dia iluminado se fez, o tempo da ilusão se foi. Soube que o presidente melhorou. Melhorou?…