Não sei o que significa o “aí” do presidente. É uma espécie de palavra mágica que serve para revelar sua indigência vocabular
A gente já se acostumou. Todos os dias, no caminho de casa para o trabalho, ou na volta do trabalho para casa, o presidente da República dá uma paradinha para conversar com repórteres e expor ao mundo seu mau humor e sua incapacidade de conviver com a Humanidade. Quinta-feira não foi diferente. Só que, desta vez, o presidente deu até um sorriso enquanto dizia “a classe artística deve ficar feliz, aí.”
Não sei bem se deveria botar a vírgula antes do “aí”. Na verdade, não sei o que significa o “aí” do presidente. É uma espécie de palavra mágica que serve para revelar sua indigência vocabular. No caso, ele estava se referindo às últimas medidas que tomou em relação à Cultura no país, transferindo a Secretaria Especial de Cultura do Ministério da Cidadania para o Ministério do Turismo e nomeando para o cargo de secretário o Sr. Roberto Alvim, aquele que entrou para a História porque ofendeu Fernanda Montenegro.
Roberto Alvim, promovido por ofender Fernanda Montenegro
Houve quem visse na afirmação do presidente uma sutil ironia. O sorriso e os decretos no Diário Oficial seriam a vingança contra a classe artística que não o apoia —e, por tabela, contra a classe artística que o apoia também. Não vejo assim. Não há capacidade intelectual no presidente para exercer a sutileza. Sua ironia foi daquelas que a gente pode chamar também de deboche. Mas não deu certo. Na verdade, a classe artística está feliz mesmo. Mas não porque ele nomeou alguém despreparado para o cargo ou transferiu a secretaria para um ministério inadequado. Isso não foi surpresa. O presidente nunca foi visto lendo um livro (nem do Olavo de Carvalho), vendo um filme ou assistindo a uma peça. O presidente despreza a Cultura, e a classe artística não espera nada dele.
A classe artística está feliz porque tem peça de Zé Celso em cartaz, tem livro novo do Chico Buarque nas livrarias, as memórias de Fernanda são bestseller, “Bacurau” já atraiu 700 mil espectadores… O presidente pode espernear, mas a arte resiste. O Brasil é celeiro de grandes artistas como João Gilberto e Bibi Ferreira, que morreram durante o governo Bolsonaro, mas não mereceram uma homenagem do presidente. Bolsonaro só não se omitiu quando morreu MC Reaça, um parodista que fazia rimas de apoio ao governo sem a menor noção do que fosse prosódia. “Será lembrado pelo dom, pela humildade e por seu amor ao Brasil”, lamentou o presidente. Não será, não. Vai ser lembrado como um MC que traiu a esposa, agrediu a amante e se suicidou. No fundo, quando agride os artistas, o presidente demonstra ter medo. Havia uma canção, cantada pelo MPB 4 no tempo da ditadura militar, que mostra a força da arte. É “Pesadelo”, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro. Um trecho: “Você corta um verso, eu escrevo outro Você me prende vivo, eu escapo morto (…) Que medo você tem de nós”
Artistas como Fernanda Montenegro, Chico Buarque e Betânia são perseguidos por bolsonaristas
Ele acaba com o Ministério da Cultura, dá um cargo supostamente importante na área cultural para um artista rancoroso, ameaça intervir em instituições como a Funarte, a Ancine, a Biblioteca Nacional, mas os Chicos e as Fernandas continuam aí. Os Zé Celsos e os Bacuraus também. Eles fazem arte, presidente. São indestrutíveis.