Não mais que de repente reaparece Xuxa. O retorno da espetaculosa estrela sugere revisão do andamento de nossa história recente, vista num arco temporal como um ciclo que se completa. Assim, a decantada celebração de seus 60 anos vale como senha para a
compreensão de caminhos retraçados por gerações de fãs e críticos, por quantos cresceram desde a abertura política do início da década de 1980. Há um rastro histórico implicado na retomada do trajeto da gauchinha que avaliza a própria odisseia numa minissérie intitulada
“Xuxa, o documentário”, dirigido por Pedro Bial. Sob chamada provocativa, ela se revela uma espécie de vítima da fama alcançada pela indubitável combinação de talento, muito trabalho e oportunidade. Perfeito: tais argumentos servem de régua para medir nosso tempo político-cultural que alterna a relação autoritarismo x democracia.
Talento nunca faltou a Xuxa, ainda que muitos detratores não reconheçam a limpeza de sua voz, o timbre controlado e potente; sua capacidade de domínio cênico se provou não só no palco para crianças como também em passarelas de moda e até no cinema – e não tem como desconsiderar sua inacreditável capacidade de trabalho; talvez sua mais vibrante referência se deva ao senso de oportunidade, ou percepção do momento de seu aparecimento, e agora de seu retorno. Sim, a meteórica ascensão de Xuxa se deu na superação da ditadura civil-militar que precisava da mocinha, bonitinha, branquinha, loirinha, sardentinha, uma espécie de Barbie Tropical, alguém capaz de significar o ideal new face necessário para um país que saia da escuridão política. E não foi à toa que ela viu endereçado seu capital artístico para o público infantil. E, lembremos, seu fulgor durou mais de 35 anos. Uma geração inteira se habituou aos seus modos e agora, adulta, encena nova peça, metáfora de um círculo que se fecha em mais uma ressureição democrática.
Impossível escrever a história recente do Brasil sob o signo da indústria cultural sem dedicar um capítulo especial a essa pop star. Num brevíssimo voo, convém lembrar que aos 16 anos já era modelo contratada pela Ford Models que aliás a levou a Nova York onde morou até 1980. De volta, convidada por Maurício Seherman, ganhou as telas da Rede Manchete, no cativante “Clube da Criança”. Como ela, gradativamente o Brasil acelerava transformações potencializadoras de graus internacionais mais expressivos. Boni, o atento produtor da Rede Globo, a atraiu para a crescente empresa onde então estreou o “Xou da Xuxa” em 1986, exatamente um ano após a chegada de Sarney à presidência. Politicamente, nada mais coerente e articulado: governo, Rede Globo e a Xuxa.
Entre brincadeiras, desenhos animados e apresentação de convidados, a música sempre assumiu papel destacado em suas apresentações. Com 36 discos em português, 7 em espanhol, 5 trilhas sonoras, Xuxa vendeu cerca de 40 milhões de álbuns mundo afora. Dentre
tantos sucessos, sem dúvidas, o “Xou da Xuxa 3” foi o mais celebrado, atingindo o recorde de 3,2 milhões de cópias – sendo que o carro-chefe, o “Ilariê” foi gravado em cerca de 70 idiomas.
Xuxa, Bial e Marlene Mattos, empresária que se transformou em desafeto
No âmbito da mundialização, o Brasil também se alçava economicamente e, de braços dados, m sucesso justificava o outro. Na Globo, o formato sempre dinâmico e evoluído dos programas infantis foi acompanhado de perto pela Diretora de Produção Marlene Mattos que depois do rompimento das duas foi apontada como uma espécie de bruxa autoritária. Xuxa, diga-se, teve aceitação anterior e em
1981 estampava mais de 80 capas de revistas, alimentando inclusive o imaginário masculino com provocante ensaio na divulgada revista Playboy. Ato contínuo, o cinema atraiu a bela que protagonizou o filme dirigido por Walter Hugo Khouri, intitulado “Amor estranho amor” – onde encenava uma prostituta que seduziu um rapazote de 12 anos, filho do amante. Foi o que bastou para acender a fagulha que, para o bem ou para o mal, impulsionou a carreira da polêmica “Rainha dos baixinhos”.
Afinal, como perceber o reaparecimento da Xuxa agora? Não há como roubar-lhe o protagonismo como figura pública, mas o contexto artístico mudou muito. O movimento negro, em particular, conseguiu projetar novas figuras e o padrão de shows, em todos os
níveis, alterou de maneira a não caber mais figuras e pautas antes defensáveis. É verdade que em termos feministas, Xuxa sempre levantou algumas bandeiras progressistas, bem como frente a inclusão social, mas há uma nova geração que, ironicamente, sofreu influência dela
que assume posições coerentes com novo tempo. Seja como for, um desafio permanece e não parece ter fim, como dizer a ela: Xuxa beijinho, beijinho, tchau, tchau… Xuxa, seja eterna e persistente como nossa democracia.