O
mito antropofágico servia de base para contrapor o
modelo colonizador, da domi-nação patriarcal,
“contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada
por Freud - a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições
e sem penitenciárias do ma-triarcado de Pindorama”.
Este pressuposto consagrou a mãe como nossa metáfora
cultural por excelência e a entranhou em todos os sentidos
da cultura. E, entre nós, existe ofensa maior do que
xingar a mãe? Ou reconhecimento maior do que garantir
que “amor só de mãe”? aliás,
contra o machismo dominante em nossos meios, sempre vale como
alerta o velho axioma “pai a gente pode duvidar, mas
a mãe é garan-tida”.
Creio que, no Brasil, a gran-de prova da força da mãe
pode ser medida pela ora-lidade. É na música
popular (MPB) que podemos ver al-guns diálogos in-teressantes
que, afinal, servem para provar esta tese. Entre as mais importantes
e conhecidas le-tras brasileiras, de todos os tem-pos, sem
dúvi-das, a marchinha assinada por Ja-raraca “Mamãe
eu quero”, gravada pela primeira vez em 1936 juntamente
com Almirante é uma espécie de mãe de
discursos que ecoam em diferentes gêneros e tempos musicais.
A letra começa com um diálogo que (infelizmente)
desapareceu ao longo das muitas gravações, mas
o núcleo permanece com referência constante.
Há, porém, detalhes desse sucesso que poucos
conhecem: ninguém queria gravá-la, mas depois
foi consagrada nos Estados Unidos por Carmem Miranda, tornou-se
ma-nia sendo que as mais importantes gravações
são as femininas, Astrud Gilberto (1982) e Beth Carvalho
(1984); foi ainda usada como propaganda política nas
eleições de 1946, como gingle para a eleição
do autor, pelo PCB (Partido Comunista Brasileiro), como vereador,
no Rio; tornou-se uma espécie de hino dos carnavais,
principalmente das bandi-nhas que sempre dão o grito
com os acordes presentes na memória de todas as gerações:
“mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar”.
Em 1988, Leo Jaime, em uma letra picante intitulada “Todas
as honras do presidente”, criticava os governantes com
uma sátira mor-daz: “Eu quero ser um executivo
Pra eu poder mandar/E ter um cachor-rinho/Que é pra
eu ter o que chutar/Eu quero ser o presidente/Pra eu poder
matar/E ter uns estudantes pra eu torturar”. E terminava
as demais estrofes com o aludido “Mamãe eu quero”.
Ainda mais explícito é o eco deixado por Rita
Lee que em 1993 de-clarava em “Filho meu” que
“Meu filho me disse mãe/Hoje já é
ama-nhã/Aquele sonho Tutti-Frutti mãe/Virou
um kaos de hortelã/Com-putador e sem puta dor/O vírus
vai ata-car/Bate uma larica existencial/Mamãe eu quero
mamar!” e, concluía com um contundente “A
mão que afaga é da mãe que afoga/Help!Ó
mãe gen-til!/Help!Quem me pariu!/Help!
Eu quero minha alma de vol-ta!”. Cho-cante.
Não deixa de ser significa-tiva a transposição
do conceito familiar de mãe para a maternidade nacional.
Mais rele-vante ainda é a consideração
da dependência filial que se estabelece ao longo da
construção de nossa cultura. A “mãe
gentil” derivada de nosso hino nacional, mais do que
mera mãe biológica, ao se ampliar para a pátria
mostra uma significativa mudança do conceito de filiação.
No caso restrito, mãe é carinhosa evocação.
Dilatado seu sentido, como gover-no, gradativamente vai perdendo
o signi-ficado de generosidade e ganhando a crítica
dos filhos que se rebelam. Pensei nestes valores quando supunha
um jeito de ho-menagear as mães. Ainda bem que reser-vamos
no plano privado, intacta, a imagem daquela que nos fez filhos.
Ainda bem que reservamos no plano público o sagrado
dever de criticar. |