Figura
emergida no contexto brasileiro e mundial com estrondoso sucesso
editorial, com um livro intitulado “Quarto de despejo:
diário de uma favelada”, na década de
1960, Maria Carolina de Jesus chama a atenção
até hoje por sua originalidade, embora faça
mais sucesso no exterior.
No conturbado contexto da estrutura capitalista daquela década
tumultuada, sobressaiu-se no Brasil em dois pólos distintos,
porém complementares: dos pobres e dos ricos. Ao evadir-se
da favela onde morava, contudo, não se integrou em
outro espaço e, talvez, isto a faça personagem
enigmática no quadro da modernidade. Por seus escritos
fora dos padrões aceitáveis, catalisou atenções
de quantos se mostravam preocupa-dos com algumas situações
de mudanças do comportamento social que tangenciava
o revolucionário: miséria como perigo; dilemas
de integração de afro-decendentes; impacto de
legiões de migrantes da área rural para as metrópoles.
Carolina foi significativa, sobre-tudo, pelo que representou
para o mundo ameaçado pelo reconhecimento do poder
de forças populares que se exibiam emergentes, capazes
de ações “perigosas”.
Sobre Carolina, escrevi, juntamente com Robert M. Levine,
dois livros publicados no Brasil e dois no exterior, além
de muitos arti-gos, notícias e reflexões sobre
aquela obra. Em virtude disso, a família de Carolina
per-mitiu que vistoriássemos 37 cadernos desta autora.
Selecionei “O rei rico”, uma de suas estórias
inéditas, a fim de apresentá-la à nova
geração.
O
REI RICO
Era uma vez um rei rico, rico, rico. Tão rico era o
rei que seu castelo era de ouro, prata, esmeralda, rubi e
de todas as pedras preciosas do meu Brasil amado. Suas roupas
eram adornadas de brilhantes, pérolas e diamantes de
todos os tamanhos. Era mesmo um rei muito rico. Sua mulher,
a magestade, era linda, de olhos azuis como o céu do
verão do meu Brasil. Ela era loura e de cabelos lisos.
Tudo alí era bonito e luzente. Era tão explendoroso
que até os empregados eram chiques, tinham carro, casa
de alvenaria, co-mida limpa e escravos. Os escravos também
eram lindos, fortes, com dentes certos que pareciam até
madripérola. Era um reino perfeito onde até
os pobres eram ricos.
Neste
relato, a estética do brilho apresenta-se como ideal
e o esplendor das pedras preciosas serve para mostrar a harmo-nia
possível onde todos eram ricos e por isto devidamente
enquadra-dos. Tudo parece ter um lugar perfeito e a ordem
domina o quadro em que o cenário é suntuoso.
Pre-side, pois, nesta trama curta um equilíbrio social
sem nenhuma tensão. Na hierarquia apresentada rei,
empregados e escravos não se ostenta conflito porque
todos estão bem em seus lugares. Perfeito era o lugar
onde até os pobres eram ricos, conclui.
A idealização estética tem, nesta estorieta,
papel importante para o entendimento do mundo de Carolina
que aceitaria até a pobreza desde que houvesse coerência
e beleza. Os fatores determinantes da conformação
dos “submissos” estava dada pelos seguintes valores
que marcavam o “ex-plendoroso”: “os empregados
eram chiques, tinham carro, casa de alvenaria, comida limpa
e escravos” estes por sua vez “também eram
lindos, fortes, com dentes certos que pareciam até
madripérola”.
Neste enredo, curiosa é a presença do Brasil,
com suas pedras preciosas. Mesmo abstraindo o fato de se tratar
de um “reino” e da rainha ser “linda”
pelos olhos azuis e cabelos loiros, a referência pode
ser vista menos como apelo patriótico e mais como expressão
de conforto dado tanto pelo possessivo “meu” como
pela referência ao “céu do verão”
brasileiro.
Ao retomar este tema, perplexo, fico pensando em tudo que
estamos deixando de lado na cultura brasileira. Tomara que
as novas gerações saibam ler mais e melhor es-tes
testemunhos, raros, da literatura da pobreza. |