A FATALIDADE DA POBREZA
Depois que escrevi sobre Carolina Maria de
Jesus, alguns companheiros saudaram a lembrança daquela
intrigante figura hoje quase esquecida. Pensando na fluidez
do tempo e na fragilidade da memória cultural a respeito
dos pobres, resolvi recuperar algumas outras passagens da
escritora negra que é – pasmem – entre
nossos escritores, a pessoa mais lida, divulgada e estudada
fora do Brasil. Atualmente, apenas Paulo Coelho se equipara
a ela.
Carolina, como se sabe (ou deveria saber)
foi lançada nos anos dourados pelo jornalista Audálio
Dantas. Ele então jovem repórter era uma espécie
de Nelson Rodrigues da crônica paulistana. Tendo visitado
a Favela do Canindé, em 1958, descobriu esta mulher
que se propunha a denunciar abusos que alguns adultos faziam
em locais públicos. Interessado, foi até o barraco
da valente mulher e teve contato com seus cadernos. Um verdadeiro
tesouro para o entendimento da genuína cultura popular
lhe fora apresentado. Paradoxalmente, o sucesso dos diários
apagou a possibilidade de outros escritos. Carolina deixou
mais de cinco mil páginas escritas e entre tantas,
alguns contos como o abaixo.
PORQUE
DEUS NAO AJUDA OS POBRES.
Coronel Totonho era um homem mau. Timoteo seu capanguinha
era um bom pretinho. Uma noite o Coronel sonhou que havia
morrido e que as formigas estavam estracalhando sua boca,
devorando sua lingua, seus olhos. Acordou nervoso, mas
arrependido do todas as safadezas que fazia com os coitados
dos colonos da Fazenda Santa Felicidade. Pois bem, arrependido
de todos os pecados, o terrivel coronel resolveu recompesar
o castigado capanguinha. Foi ate sua casa, mandou-o colocar
a melhor roupa e levou o coitadinho ate o armazem do turco
Farid no alto do morro do Breu. Chegando la, o coronel
disse para Timoteo que ele poderia escolher o que quisesse
e que poderia levar para sua casa tudo, tudo, tudo o que
pudesse carregar.
Espantado Timoteo logo foi pegando sacos de rapdura, acucar,
cafe, mamelada cascao, uma cachacinha, cobertor, panelas
novas e ate um sapato para sua a sua Zulmira. Como o coronel
disse que ele poderia pegar tudo que pudesse carregar,
nao teve duvida de escolher mais coisas: um machado, um
facao novo, uma enchada, um biotonico Fontoura, um fardao
e um vestido para a sua patroa. Ja era um montao de coisa,
mas achou que poderia tambem pegar uma botina nova para
si, uns brinquedos para os dez filhos. O montao ia crescendo,
mas ele ainda queria mais: um radinho de pilha, o retrato
de Santo Antonio, um ramo de flor de materia plastica.
Tentou agarrar tudo e viu que ainda poderia juntar um
pouco de tabaco, carne seca e umas cocadas. Era demais,
mas quem sabe quando o coronel daria mais uma oportundidade
daquelas?
Depois que viu tudo junto, nem pensou em desanimar. Deu
jeito, amarrou tudo com uma corda, e prendeu na cintura.
Andou uns dez metros e sentiu-se cansado:
- Ai meu deus do ceu, me ajuda, ajuda.
Mas nao desistiu e resolveu carregar de frente, abracando
tudo, com a corda amarrada na cintura.Andou mais uns cinco
metros e se cansou pensou então em puxar o material,
caminhou mais uns metros e viu que não aguentava,
mas nao queria desistir e nao desistiu.
-Ai meu deus do ceu, me ajuda.Resolveu empurrar. Conseguiu
pouco. Comecou entao a jogar fora a propria roupa. Primeiro
o chapeu, depois a farda nova, tirou a botina mas nao
desistiu de levar tudo. Pouco adiantou. Nao coseguiu nada.
Atento o coronel olhava e dissia, vai Timoteo, vai que
voce consegue.
Por fim, o coitado do capanguinha desacorssoado, ja sem
camisa, sem botina, e com a mercadoria toda enrolada na
corda presa a cintura, pensou que poderia tentar uma ultima
coisa: jogar tudo morro a baixo e pegar no pe da serra.
Fez. Fez e morreu porque esqueceu-se que tudo estava amarrado
na mesma corda presa em sua cintura. |
O reconhecimento da família Jesus pelo
trabalho que meu companheiro Robert M. Levine e eu fizemos
favoreceu a confiança de seus parentes que nos legaram
cuidar daqueles cadernos que hoje estão colocados ao
público na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Deve-se considerar nesta história a
fatalidade da pobreza. O que se tem é uma possibilidade
de mudança social delegada por um acaso – o sonho
– mas a melhoria de vida, mesmo assim, não se
realizou. Esta narrativa mostra a tirania dos poderosos e
a incapacidade de mudança dos pobres oprimidos pela
carência e vontade de ter bens materiais imediatos.
A morte se apresenta com resposta a alternativa inevitável
frente a ganância. Enfim, a riqueza pela riqueza não
fazia sentido a Carolina.
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