Jean paul Sartre em plena juventude existencialista |
Não
sou “celebracionista”. Aliás, devo dizer
que até mantenho um certo desprezo por aqueles que
vivem aproveitando as datas notáveis para então
comemorar o que deveria ser festejado sempre. Lembro-me inclusive
de uma passagem, de um samba delicioso de Nelson Cavaquinho
e Guilherme de Brito, numa interpretação espetacular
de Beth Carvalho, que sonoriza “sei que amanhã
quando eu morrer/ os amigos vão dizer que eu tinha
bom coração” e continua para concluir
“me dê as flores em vida/ o carinho, a mão
amiga/ para aliviar meus ais/ depois que eu me chamar saudade/
não preciso de vaidade/ quero prece e nada mais”
antes, porém estava pontificado “por isso é
que eu penso assim: se alguém quiser fazer por mim/
que faça agora”.
Pois é, precisei de tudo isto para propor uma reflexão
sobre um filósofo que faria cem anos: Jean Paul Sartre.
Ao anuir em escrever esta coluna, porém, me propus
a falar mais do Brasil e de coisas nossas, a misturar música,
cinema, literatura e outros produtos domésticos. É
verdade que vivo um surto nacionalista coerente com o princípio
que reza que “o melhor do Brasil são os brasileiros”.
Mas uma série de livros atordoou-me e vi-me em face
do que Lucien Goldmann chamaria de “negociações
temáticas”. Ganhei de presente de uma pessoa
amada três exemplares importantes: um, o perturbador
“Sartre: philia e autobiografia”, outro, a reedição
de “A náusea”, e o terceiro “O muro”.
Li tudo de uma golfada só. Ou melhor, li o inédito,
sobre o autor, e reli os dois outros.
No primeiro
caso, o texto assinado por Deise Quintiliano e publicado pela
DP&A e Faperj me arrebatou desde o título. Levando
em conta o sentido de “Amizade” (philia) e contrastando
com “Fraternidade” (pressuposto essencial da atitude
francesa desde a Revolução de 1789), a autora
feriu um dos conceitos vitais para o entendimento do grave
filósofo que encantou a minha geração.
Sartre, como ninguém, soube mudar de posições
políticas, assumiu as transformações
e vivenciou o que de mais sagrado resta a um filósofo
que é se explicar. E o fez em vários gêneros:
teatro, romance, densos textos filosóficos.
Revisitando Sartre hoje, vejo que seu impacto respondia mais
a questões sociais do que propriamente aos precários
individualismos existencialistas. Compreendo melhor agora
os porquês da injusta pecha delegada a ele como “representante
da legítima corrente do pensamento pequeno-burguês”.
Mas foi mesmo pela valentia de romper com valores marcantes
que o fez lúcido. A briga com Albert Camus, por exemplo,
o coloca como um dos mais polêmicos e conflituosos autores
de seu tempo. O mesmo se diz da quebra de amizade e da troca
de farpas com Merlau-Ponty. Em ambos os casos, o que esteve
presente é a coragem de dizer que amizade dele por
ambos permitia a crítica.
De saída,
gostei das duas edições reedições
promovidas pela Nova Fronteira. E como estas releituras fizeram-me
pensar! Recompus os tempos de mocinho quando era “bem”
ler Sartre e alinhavar toscamente os pressupostos do existencialismo.
Lembrei-me, com saudade, de como Sartre ajudava a ser triste
e esbarrar na depressão juvenil. Nessa época
eu e poucos amigos gostávamos, em particular, do exercício
vazado em paráfrases do primeiro romance “A náusea”.
Aliás, como texto romanceado, valia achar mesmo que
“o inferno são os outros”. E então
poderíamos desgostar do mundo imediato esquecendo-nos
que o “outro” sartreano era o inimigo autoritário
que se investiria na década seguinte do nazismo. E
os cinco contos contidos em “O muro” serviam para
esgotar as explicações de nossos medos juvenis.
Outra vez repetia-se uma apropriação indevida,
pois Sartre seria uma espécie de justificador do pânico
de crescer.
Hoje, deslocando a leitura de adolescente, percebo que os
muros propostos por Sartre na década de 1930 eram os
mesmos que permanecem até hoje. Mas as escalas mudaram.
Mudaram também meus critérios de leituras. Jean
Paul Sartre outra vez me fez pensar. Pensar em mim e na relação
entre a tentativa de ser intelectual e meus compromissos com
o mundo. Assim, retomo o fio da meada, será que o inferno
são mesmo os outros? Ou é o nosso medo e incapacidade
de ver o mundo em constante mudança?
|